Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Solar da Fossa, uma pensão que dá o que pensar (sobre a contracultura no Brasil)

   É do compositor Zé Rodrix, talvez, a melhor definição do Solar da Fossa, nome que recebeu a Pensão Santa Terezinha, casarão na cidade do Rio de Janeiro em que habitaram na mesma época, vários jovens criativos que marcaram a cultura brasileira: "Não se sabe como nem porque, em algum momento de 1966, várias pessoas interessantes resolveram morar no mesmo lugar. E havia espaço para todas"...
   Esta declaração consta do livro "Solar da Fossa - Um território de liberdade, impertinências, ideas e ousadias", de Toninho Vaz (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2011), que conta a história deste espaço que no final dos anos 1960 reuniu compositores, artistas, hippies, que moravam em pequenos apartamentos alugados, enquanto se dedicavam à diversas áreas da criação, da música ao teatro, convivendo com jovens descolados de suas famílias a companhia de circo.
   Histórias de amores, dos que terminavam e dos que começavam, de sexos barulhentos, até de perseguição policial, fazem deste livro um prato cheio para se refletir sobre a contracultura no Brasil.
   Pode-se dizer que o Solar da Fossa, nome por si só ao mesmo tempo criativo e revelador de um certo estado de espírito que sondava aqueles jovens, na faixa dos 20 anos, que buscavam uma vida alternativa e viviam uma experiência de comunidade em um local aprazível, no bairro do Botafogo, depois do túnel. 
   E que marcou uma época, tornando-se um espaço mítico, onde obras-primas foram criadas - como "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola; "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso e "Catatau", de Paulo Leminski, que iniciou a livro ali, concluído em 1975 - , mas principalmente de um ambiente favorável à criação e à ousadias no comportamento, sexo e drogas entre eles, e na busca de uma expressão compatível com as utopias que circulavam internacionalmente entre os jovens que aderiam a uma perspectiva conhecida como hippie.
   O livro de Toninho Vaz, que já escreveu biografias de Paulo Leminski e Torquato Neto, preenche uma lacuna importante em sua pesquisa sobre uma casa que não foi tombada do ponto de vista arquitêtonico, mas foi derrubada nos anos 1970 para dar lugar a um dos maiores shoppings do Rio de Janeiro. Um irônico destino para um espaço alternativo ao consumismo e aos templos do capitalismo, inclusive com obras subversivas enterradas em seu jardim para não guardar provas para a repressão da ditadura militar em sua fase de recrudescimento.
   Mesmo não tendo, e não se propondo profundidade na análise, e até com pelo menos um erro factual - o discurso de Caetano Veloso diante de uma platéia enfurecida com ´'É proibido proibir" foi no Tuca em São Paulo e não no Maracanãzinho como registrado na página 118 - o livro já se torna uma referência obrigatória para os que estudam o período de uma perspectiva histórico-cultural.
   Tem razão o autor quando registra que "o ano de 1968 foi um divisor de águas - não apenas no Solar, mas no mundo ocidental" (p. 103), e suas histórias, grande parte fruto de registros orais durante sua pesquisa, demonstram que foi realmente um período de buscas ousadas, algumas arriscadas, mas na maioria das vezes, originais e antecipadoras.
   Curioso isto, como pessoas se reunem em um único local, no caso, simplesmente para morarem, mas o contágio criativo se torna inevitável, como demonstrou Caetano Veloso em verso: "Mandei plantar/ folhas de sonho no jardim do solar..."
   Os livros preferidos por aquela gente excêntrica e criativa eram Eros e a civilização, de Herbert Marcuse; Sexus, de Henry Miller, e Quarup, de Antonio Callado. Sem falar, é claro, de Aldous Huxley, e para os mais sofisticados, Tristes trópicos, de Claude  Lévi-Strauss... Na verdade, neste caso, segundo o autor, uma artimanha bastante comum para a sedução, o de convidar uma amiga para ler junto o livro que nunca se terminava de ler, "e às vezes, nem chegava a começar"... Tudo em nome do amor, principalmente o livre...
   Então, o "fossa" do apelido da pensão, talvez fosse mais um charme do que um diagnóstico verossímel. Como diz o jornalista Ruy Castro, que lá morou no período, em apresentação do livro em que contou com sua preciosa participação, apesar de ser hoje um crítico conservador daquelas bandeiras que abraçou um dia:
   -  "Fossa, para os meninos do Solar, era um vago e ocasional tédio, meio sem explicação, rapidamente sufocado pela urgência dos livros, canções, peças, filmes e novelas que eles sonhavam escrever, compor, encenar, dirigir ou estrelar".
   Pode-se dizer que o Solar da Fossa equivale para o Brasil o que foi o Hotel Chelsea em Nova York, em que circulavam Jimi Hendrix, Janis Joplin, os autores de Hair, e tantos outros, registrado neste excelente livro de Patty Smith, que ali vivia com Robert Mappelthorpe: Just kids, aqui traduzido e publicado pela Companhia das Letras como Só garotos.
   É como -  só para fazer uma comparação grosseira, mas pertinente -  se Gal Costa escrevesse um livro sobre sua experiência no Solar da Fossa, onde ela realmente morou por volta de 1969, sobre uma tentativa de construir uma história de amor com Hélio Oiticica, que obivamente não ocorreu pelo que sei, e nem o livro sugere, é claro, mas que também frequentava, sem habitar, o mítico Solar... Aliás, Oiticica fez a capa de um dos discos mais ousados de Gal Gosta, de um show que ela fazia em uma garagem próxima ao Largo do Arouche, que eu vi quase dez vezes, acompanhada pelo Som Imaginário, de Zé Rodrix, em 1971, e saia encantado quando ela se despedia de mim dizendo "tchau, neguinho"...
   O Solar da Fossa era, na verdade, um caldeirão criativo da contracultura brasileira.... E, com certeza, vai inspirar mais obras, mais livros, filmes e músicas. Um livro delicioso de ler, mesmo que com algumas imprecisões, e até certa superficialidade inevitável; mas  inspirador sem ser nostálgico, uma referência obrigatória para este final de férias...
   Fossa, no sentido negativo, é não ter memória, é não preservar as curtições do passado para gerar criações no futuro... E este livro de Toninho Vaz cumpre bem sua missão, resgatar um dos períodos mais criativos da cultura brasileira, das origens de uma contracultura no Brasil...

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