Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

sábado, 12 de novembro de 2011

O que é ser hippie?

  Desde minha juventude, no final dos anos 60 e começo dos 70 do século XX, me pergunto o que é ser hippie? Se eu era hippie, se adotava uma ética hippie (no sentido do paz e amor), uma estética (sem saber seu significado), um comportamento. Por outro lado, era muito careta, sempre temi perder o controle das coisas, principalmente de mim mesmo. Quando me foi oferecido, por um amigo querido, uma pastilha de ácido, recusei. Eu achava que já sabia tudo só lendo sobre. Fiquei feliz ao ler o livro de Caetano Veloso, um de meus ídolos desde sempre, que ele é também não aderiu ao festival de drogas que sua época permitia (hoje, confesso, mais um circo dos horrores). Não se trata, nem ele faz isto, de um julgamento moral dos que se entupiram (pelos tragos, pelas veias e pelas narinas, pelas bocas) nos anos loucos. Muitos sobreviveram para contar a história, outros viraram personagens de um poema hoje clássico de Allen Ginsberg..... (continuo esta reflexão assim que puder, assim que voltar de uma viagem).....

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Existe vida inteligente na televisão? O caso de "Cordel Encantado"

   Em curso de Pós-graduação Latu Senso na FAAP, Gestão e Produção Executiva em Televisão, leciono em alguns sábados a disciplina Crítica de Televisão. Foi uma ideia do professor Vagner Matrone, coordenador do curso, pois julga importante os pós-graduandos em gestão de televisão terem contato também com uma visão intelectual e acadêmica sobre o tema, já que  o curso é voltado para profissionais. Entre os temas que desenvolvo, destaco conceitos de cultura, entretenimento, contracultura e finalmente, uma provocação, a partir de uma pergunta: existe vida inteligente na televisão?
   No último sábado, 24/09/2011, última aula da turma 8, os grupos apresentaram seus trabalhos, e curiosamente, o que predominou nos temas dos projetos foi a pergunta provocativa. Minha expectativa - sem prejuízo na avaliação - é que predominasse meu maior investimento no conteúdo, que o tema sobre a compatibilidade ou não da contracultura com o mainstream.
   Mas o que predominou foram tentativas, algumas bem originais, em responder a questão de forma positiva. Foram projetos de programas "inteligentes".
  
   Curiosamente, no mesmo dia em que se encerrava uma das maiores surpresas dos últimos anos em matéria de mainstream: a telenovela "Cordel Encantado", no horário das 18 horas, na Rede Globo de Televisão.
   Dirigida por Amora Mautner, filha de Jorge Mautner, escrita por , dedicou a novela aos cordelistas e tropicalistas, "que nos reinventaram"...
   E sobre o que pretendo escrever aqui na seqüência.....

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Revendo Sem Destino

   Na última  terça-feira, dia 06 de setembro, véspera do feriado da independência do Brasil, revi o filme "Sem Destino" (EUA, Easy Rider, Dennis Hopper, 1969) com alunos do Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na disciplina optativa para mestrandos e doutorandos, "Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares", que divido com a professora Maria Aparecida de Aquino.
   Após o filme, tivemos um tempinho para discutir o filme, que já devo ter visto mais de vinte vezes. E cada vez que assisto, me emociono de uma forma diferente. Isto é o que define, segundo Ítalo Calvino, uma obra clássica. E "Sem Destino" é um filme clássico!!!...  Clássico por ser utilizado em uma sala de aula, mas também clássico porque quase todo mundo "letrado" em cinema contemporâneo já assistiu, ou pelo menos, já ouviu falar de um filme que conta a história de dois motoqueiros chapados que atravessam os Estados Unidos em busca de um carnaval em New Orleans.
   Clássico é para Calvino, referindo-se a livros, uma obra que quase todo mundo conhece mesmo sem ter lido, ou visto, mas principalmente é uma obra que a cada vez que é revista, é uma obra nova, surpreendente. E "Sem Destino" é isso, uma obra que apesar de ser extremamente datada (Dom Quixote também é), pode ser vista sempre como uma novidade.
   Lembro-me bem quando assisti o filme pela primeira vez, no início dos anos 1970 (não tenho certeza se em 1970 mesmo, ou início de 1971), em um cinema da Avenida Paulista (não tenho certeza, mas pode ter sido o Cine Astor, onde hoje é a Livraria Cultura). Estava só e deprimido; sem namorada, sem paixão, sem nada, um horror para um romântico como eu. Um jovem de 19 anos,  cabeludo meio metido a hippie, morando na periferia de São Paulo. Era um sábado, sem escola, sem trabalho, peguei os vários ônibus que me levavam a atravessar a cidade. Disse à minha mãe que não me esperasse para o almoço, só voltaria à noite. Assisti o filme na primeira sessão da tarde e fiquei pasmo, perplexo, emocionado.
   Impactado com o filme, não sai do cinema quando terminou a primeira sessão  para poder ver mais uma vez (naquele tempo se podia ficar no cinema quantas sessões quisesse). Ao término do reprise, já no final da tarde, sol se pondo, sai refletindo sobre o que tinha presenciado. Mas não me lembro o quê. Só me lembro que havia adorado o filme, mas que me deixava ainda mais melancólico, sem saber por quê. Alguma coisa no mundo acontecia. Mesmo assim, não voltei para casa. Comi um lanche, e entrei em outro cinema, para assistir um filme ainda mais pesado: "Perdidos na Noite" (EUA, "Midnight Cowboy", John Schlesinger, 1969).
   Hoje eu sei, em "Sem Destino", a viagem de Los Angeles a New Orleans; em "Perdidos na Noite", a chegada de dois sujeitos em Nova York. Muita informação em um dia só. Dois grandes filmes.
   Só voltei para casa no final da noite iluminado, triste, mas iluminado, um verdadeiro hipster. Será, ou isto é um mito, como diria Paulo Coelho, uma construção de uma lenda pessoal?...
  
   O tempo passou, claro, atingi a chamada idade da razão, e me afastei daqueles "delírios juvenis", mas "Sem Destino" sempre me emociona, sempre me intriga, sempre me faz pensar, principalmente agora que venho pesquisando a contracultura através de uma perpectiva interdisciplinar em cultura e artes.
  
   Vou tentar resumir como vejo o filme hoje.
   Dois sujeitos - Wyatt  (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hopper) - compram drogas de um traficante, mais exatamente cocaína, e a revendem nas redondezas do LAX, o Aeroporto de Los Angeles, para um jovem milionário que chega em uma limousine. Com o dinheiro ganho, sabemos só pelas imagens, compram motocicletas novas - tenho dúvidas se são Harley Davidson mesmo -  e partem para a estrada, cujo destino só saberemos depois.
   Antes de entrarem na estrada, Wyatt, vestido de couro, com a bandeira dos Estados Unidos no capacete, nas costas e no tanque da moto, joga seu relógio fora, numa evidente alegoria de que o tempo não teria mais nenhuma importância para ele.
   Billy está de cowboy, com chapéu e jaqueta com franjas. Ao entrarem na estrada, surgem os letreiros ao som da banda Sttepenwolf, "The pusher" (o traficante). Não conseguem abrigo em motéis que se recusam a recebê-los. Acampam e fumam maconha. Param em uma fazenda para arrumar o pneu da moto de Wyatt.
   Cena emblemática: ao fundo, enquanto trocam pneu; à frente, dono da fazenda trocando ferraduras do cavalo. Nada mais claro, até ingênuo como o jogar do relógio à beira da estrada.
   No almoço, Wyatt fornece as pistas do que hoje vejo como decisivo no filme: elogia o fazendeiro por ser dono de seu terreno, de sua família grande, dono de uma liberdade invejável. O pequeno fazendeiro diz ser casado com uma católica, daí a família grande. A mulher, visivelmente uma latina, saí para pegar um café para todos, quando Wyatt diz o que pensa sobre a liberdade, a propriedade, a felicidade. Sempre suscinto, melancólico, preciso. Nas orações do almoço, vê-se que o fazendeiro é protestante, mas seu universo é mais amplo. Isto vai ser importante no decorrer do filme, em que caipiras hostilizam os dois motoqueiros, chegando até à violência, na morte do advogado George Hanson (Jack Nicholson, em papel memorável, que o revelou para o mundo) e as mortes no final.
   Mas antes do encontro com o advogado, eles dão carona a um hippie que lhes apresenta sua comunidade no meio do deserto. Há uma discussão entre os membros da comunidade sobre se devem aceitar mais moradores, porque não haveria condições. Há um clima estranho na comunidade, misto de alegria com uma preocupação sobre intrusos que poderiam trazer problemas àquela paz que não parece tão sólida assim. O próprio Billy se queixa a Wyatt que não se sente bem entre aquelas pessoas. O retrato parece honesto, mas nenhum um pouco idílico ou idealizado. Tudo caminha para o fracasso...
   Mesmo assim, são presenteados pelo líder da comunidade com pastilhas que ele diz que só devem utilizá-las em momento muito especial.
  
   O momento mais politizado do filme é exatamente o encontro com o advogado de direitos civis que encontram na cadeia. Sabemos que ele é filho de gente rica, mas um sujeito que acredita em discos-voadores e explica aos dois que a liberdade deles ofende a maioria das pessoas (leia-se norte-americanos), fazendo com que suas vidas corressem perigo. O que acabou custando à sua própria, quando resolve seguir Wyatt e Billy em sua aventura em direção ao Mardi Gras do carnaval de New Orleans. Antes de seu fim violento, o advogado alcóolatra dá-lhes um cartão de um dos mais famosos puteiros de New Orleans.
  Foi neste recinto de luxo falsificado e kitsh que o encontro com prostitutas demonstra com mais clareza a diferença de caráter entre os dois personagens: Billy se diz de Nova York e pede à Wyatt para que fique com a mais alta, buscando ir logo às vias de fato. As duas são bonitas, mas Wyatt não dá bola para sua parceira, que se queixa de seu desinteresse.
   O prédio em que estão é uma construção histórica, barroca, e se vê que Wyatt lê as mensagens nas paredes. Uma delas chama a atenção dele: "È na morte que se revela a reputação de um homem, se ele é correto ou não". Surge uma imagem que não sabemos se uma visão de Wyatt, ou um recurso narrativo do filme, mas logo saberemos que se trata de sua própria morte. Como Cristo nas oliveiras, Wyatt, o Capitão América pode ter previsto sua própria morte.
   Neste momento, Wyatt os convida para ir para as ruas, o que é acatado por todos.  É um momento do filme que registra como num documentário o carnaval de New Orleans: exuberante, dionisíaco e colorido. Mas é na sequência que o quarteto, já pela manhã, se dirige a um cemitério. Wyatt distribui as pastilhas como se fossem hóstias. Segue-se uma viagem de ácido, nenhum momento citado como a maconha em que até uma "aula" de como fumar tem na sequência do advogado. Mas a viagem não é propriamente boa, embora aspectos religiosos se destaquem. Pode-se dizer ser uma bad trip.
   O cenário do cemitério pode ter contribuído para tanto. Até uma cena de Pietá aparece, quando Wyatt está sentado no colo de uma estátua. A música, ou batida de estaca, reforça um ambiente sombrio. É uma bela sequência surrealista, um tanto assustadora, forte, erótica e mística.
   Após a experiência lisérgica, já sem as moças, os dois voltam à estrada. Não de volta à Los Angeles, mas em direção à Flórida, segundo o roteiro original, o destino deles é Key West, não citado no filme, conforme o belo livro de Lee Hill, Sem Destino (Rio de Janeiro, Rocco, 2000), que destaca o importante papel no filme do roteirista Terry Southern, que merecia mais destaque do que tem. 
   Na última parada, entre tragadas de maconha, Wyatt diz a Billy, eufórico com o que julga a vitória deles: "Nós estragamos tudo", para espanto de um Billy incrédulo.
   "Nós estragamos tudo", diz Wyatt.
   Mas, nós, quem?
   Nós, eles que buscaram um caminho livre?
   Um caminho fácil? 
   Nós, os adeptos da contracultura?
   Os hippies do deserto?
   O advogado dos direitos civis?
   Nós, quem, cara pálida?
   Quem estragou tudo?
   Apesar dos componentes religiosos no filme - lembra "Hair" no sentido da missa -, mas mais ainda a trajetória de Jesus Cristo. Hoje eu vejo que o principal foco, que talvez nem tenha sido intencional, dado às características de vanguarda do filme, premiado em Cannes, que lembra em alguns momentos o contemporâneo Glauber Rocha (talvez seja o recurso da alegoria), esteja nesta última frase do melancólico Wyatt:
   - "Nós estragamos tudo"...
   E revendo o filme, vejo com mais nitidez qual era a utopia vislumbrada desde o começo, na primeiro encontro com a família ecumênica, feliz e de bem com seu próprio destino. Ali estava o sonho não realizado, o sonho de um país que nasceu de peregrinos em busca de uma Terra Prometida, Promise Land, o sonho de uma terra llivre, de homens bravos e livres, ajustados à natureza, e de bem com Deus.
   É o american dream que facassou!...
   E a contracultura com ele, mesmo que tenha sido a última tentativa de ressuscitá-lo, mas forças poderosas o destruíram de vez, como os tiros de um caipira que impediu os motoqueiros de chegarem à Key West, como os bombardeios de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki ou de napalm no Vietnã, como as diversas e desastradas intervenções militares norte-americanas no mundo todo....
   Como na insistência em cultuarem as armas como se fossem a garantia da liberdade tão cantada, mas sempre ameaçada...
   "Easy Rider", Sem Destino, Easy Rider, caminhantes livres e soltos, leves e puros, realmente sem destino, à deriva, como um país que perdeu seu rumo e avança em direção ao abismo....
  Será esta uma boa leitura do filme?
  Ou mais uma de um filme que já nasceu clássico, que revolucionou Hollywood (veja o livro Como a geração sexo-drogas-e-rock'n'roll salvou Hollywood, de Peter Biskind, que trás detalhes deste contexto cinematográfico)?
   Não importa, neste momento, e com a ajuda de meus alunos, é a minha leitura, que pretende ser politizada, de "Sem Destino", sobre o qual pretendo rever sempre...
   Para terminar, "Sem Destino" é um filme que vale a pena ser revisto!!!...

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Rockcareta in Rio - um desabafo de Luca Manhães

   Quando da primeira montagem do evento comercial conhecido como Rock in Rio (hoje uma marca mundial de entretenimento com base no rock), em 1985, um suplemento de Juventude de um jornal comunista - Voz da Unidade - publicou um texto em que acusava o evento de ser careta.
   O título do artigo era  "Rockcareta in Rio", pois entre outras coisas, dele não constavam os astros do rock nacional como Raul Seixas (ainda vivo) e Rita Lee (ainda bem viva hoje).
   Mas não era só isto: o país ainda vivia sob uma ditadura e não havia nada, nada mesmo, no evento, que mostrava o impacto que havia sido Woodstock. Era - e ainda é - apenas um evento comercial, mesmo que algumas bandas de rock interessantes possam dele ter participado em suas várias edições. Nada contra a motivação de lucro que rege os objetivos de um empresário bem sucedido como Roberto Medina. O problema é vender gato por lebre.
   Para confirmar o artigo assinado por Luca Manhães, naqueles longínquos anos 80, a caretice agora toma conta de uma iniciativa apoiada pela Rede Globo de Televisão, que lucra também com o evento, foi a gravação de uma música que se diz contrária às drogas. Nada contra também chamar atenção do quanto o consumo de drogas pode ser perigoso.
   Como dizia Timothy Leary, um professor polêmico de Harvard que se tornou um guru da contracultura: "Sou 100% a favor do uso inteligente das drogas, mas 1000%  contra do uso burro"; dizendo-se totalmente favorável à descriminalização das drogas.
   Polêmicas à parte, droga é assunto muito sério para ser tratado com leviandade (vale a pena ver o filme já comentado neste blog, "Quebrando o Tabu"). O pior é o oportunismo como tem sido tratado o tema nesta campanha publicitária do evento. E com a mais desvalada demagogia.
   Para piorar o quadro cultural de tal evento, a coisa ainda piora, quando se tenta substituir o já problemático slogan da contracultura, "sexo, drogas & rock'n'roll" por "sexo, atitute & rock'n'roll"; ou, mais falacioso ainda: "sexo, família & rock'n'roll".
   É muita cara de pau. Ridículo, se não fosse cômico....
   Diferente da animação baseada nos personagens de Angeli,  Woody e Stock, que levou o título, por uma questão de idade dos personagens, de "Sexo, orégano & rock'n'roll". Onde existe graça - além da crítica, sempre bem-vinda - , aqui existe uma tentativa babaca de se apropriar de um momento histórico revolucionário para acrescentar algo que nada esclarece, só confunde.
   E, é claro, com objetivos apenas comerciais, sem nenhum compromisso com qualquer mudança.
   E ainda falando em meio-ambiente!!!...
   Pura demagogia.
   Não fui em 1985, quando era mais jovem, não vou em 2011, já um tanto cansado de tantas derrotas, em um evento tão careta que depõe contra as bandas que dele participam só para ganhar dinheiro.
   E, alíás, quem deveria participar deste evento deveria ser Justin Bieber fazendo dueto, como uma dupla sertaneja, com Luan Santana, o Wagner Moura vesgo.
   Só um esclarecimento aos leitores atentos deste blog: quem escreveu este desabafo não foi o dono do blog, que supõe ser mais sério do que este colaborador eventual, mas foi um espaço gentilmente cedido a mim, filho de Manguari Pistolão, Luiz Carlos Manhães, mais conhecido como Luca Manhães, autor do desabafo no jornal Voz da Unidade em 1985, o que levou a uma repercussão tal que até o jornal Folha de S. Paulo entrevistou na época Salomão Malina, secretário-geral do PCB, sobre o artigo tão virulento, um tanto contraditório para um partido político que lutava por sua legalidade. E Malina, com toda sua elegância de um revolucionário vivido, respondeu: "os jovens escrevem o que querem no suplemento Juventude do Voz da Unidade". E era quase verdade que se podia escrever tudo no suplemento, apesar dos esforços de seu editor, o grande jornalista Sérgio Kraselis.
   O jornal comunista não existe mais, Salomão Malina, grande combatente da democracia e do socialismo,  já morreu, mas o Rock in Rio continua sendo o que sempre foi, uma caretice brega travestida de modernidade e rebeldia.
   E agora com campanhas moralistas, aquelas que tanto agradariam Ronald Reagan, Richard Nixon e todo o Tea Party juntos...
   Tô fora!!!....
                                                                                                                    (Assinado: Luca Manhães)
  
  

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Solar da Fossa, uma pensão que dá o que pensar (sobre a contracultura no Brasil)

   É do compositor Zé Rodrix, talvez, a melhor definição do Solar da Fossa, nome que recebeu a Pensão Santa Terezinha, casarão na cidade do Rio de Janeiro em que habitaram na mesma época, vários jovens criativos que marcaram a cultura brasileira: "Não se sabe como nem porque, em algum momento de 1966, várias pessoas interessantes resolveram morar no mesmo lugar. E havia espaço para todas"...
   Esta declaração consta do livro "Solar da Fossa - Um território de liberdade, impertinências, ideas e ousadias", de Toninho Vaz (Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2011), que conta a história deste espaço que no final dos anos 1960 reuniu compositores, artistas, hippies, que moravam em pequenos apartamentos alugados, enquanto se dedicavam à diversas áreas da criação, da música ao teatro, convivendo com jovens descolados de suas famílias a companhia de circo.
   Histórias de amores, dos que terminavam e dos que começavam, de sexos barulhentos, até de perseguição policial, fazem deste livro um prato cheio para se refletir sobre a contracultura no Brasil.
   Pode-se dizer que o Solar da Fossa, nome por si só ao mesmo tempo criativo e revelador de um certo estado de espírito que sondava aqueles jovens, na faixa dos 20 anos, que buscavam uma vida alternativa e viviam uma experiência de comunidade em um local aprazível, no bairro do Botafogo, depois do túnel. 
   E que marcou uma época, tornando-se um espaço mítico, onde obras-primas foram criadas - como "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola; "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso e "Catatau", de Paulo Leminski, que iniciou a livro ali, concluído em 1975 - , mas principalmente de um ambiente favorável à criação e à ousadias no comportamento, sexo e drogas entre eles, e na busca de uma expressão compatível com as utopias que circulavam internacionalmente entre os jovens que aderiam a uma perspectiva conhecida como hippie.
   O livro de Toninho Vaz, que já escreveu biografias de Paulo Leminski e Torquato Neto, preenche uma lacuna importante em sua pesquisa sobre uma casa que não foi tombada do ponto de vista arquitêtonico, mas foi derrubada nos anos 1970 para dar lugar a um dos maiores shoppings do Rio de Janeiro. Um irônico destino para um espaço alternativo ao consumismo e aos templos do capitalismo, inclusive com obras subversivas enterradas em seu jardim para não guardar provas para a repressão da ditadura militar em sua fase de recrudescimento.
   Mesmo não tendo, e não se propondo profundidade na análise, e até com pelo menos um erro factual - o discurso de Caetano Veloso diante de uma platéia enfurecida com ´'É proibido proibir" foi no Tuca em São Paulo e não no Maracanãzinho como registrado na página 118 - o livro já se torna uma referência obrigatória para os que estudam o período de uma perspectiva histórico-cultural.
   Tem razão o autor quando registra que "o ano de 1968 foi um divisor de águas - não apenas no Solar, mas no mundo ocidental" (p. 103), e suas histórias, grande parte fruto de registros orais durante sua pesquisa, demonstram que foi realmente um período de buscas ousadas, algumas arriscadas, mas na maioria das vezes, originais e antecipadoras.
   Curioso isto, como pessoas se reunem em um único local, no caso, simplesmente para morarem, mas o contágio criativo se torna inevitável, como demonstrou Caetano Veloso em verso: "Mandei plantar/ folhas de sonho no jardim do solar..."
   Os livros preferidos por aquela gente excêntrica e criativa eram Eros e a civilização, de Herbert Marcuse; Sexus, de Henry Miller, e Quarup, de Antonio Callado. Sem falar, é claro, de Aldous Huxley, e para os mais sofisticados, Tristes trópicos, de Claude  Lévi-Strauss... Na verdade, neste caso, segundo o autor, uma artimanha bastante comum para a sedução, o de convidar uma amiga para ler junto o livro que nunca se terminava de ler, "e às vezes, nem chegava a começar"... Tudo em nome do amor, principalmente o livre...
   Então, o "fossa" do apelido da pensão, talvez fosse mais um charme do que um diagnóstico verossímel. Como diz o jornalista Ruy Castro, que lá morou no período, em apresentação do livro em que contou com sua preciosa participação, apesar de ser hoje um crítico conservador daquelas bandeiras que abraçou um dia:
   -  "Fossa, para os meninos do Solar, era um vago e ocasional tédio, meio sem explicação, rapidamente sufocado pela urgência dos livros, canções, peças, filmes e novelas que eles sonhavam escrever, compor, encenar, dirigir ou estrelar".
   Pode-se dizer que o Solar da Fossa equivale para o Brasil o que foi o Hotel Chelsea em Nova York, em que circulavam Jimi Hendrix, Janis Joplin, os autores de Hair, e tantos outros, registrado neste excelente livro de Patty Smith, que ali vivia com Robert Mappelthorpe: Just kids, aqui traduzido e publicado pela Companhia das Letras como Só garotos.
   É como -  só para fazer uma comparação grosseira, mas pertinente -  se Gal Costa escrevesse um livro sobre sua experiência no Solar da Fossa, onde ela realmente morou por volta de 1969, sobre uma tentativa de construir uma história de amor com Hélio Oiticica, que obivamente não ocorreu pelo que sei, e nem o livro sugere, é claro, mas que também frequentava, sem habitar, o mítico Solar... Aliás, Oiticica fez a capa de um dos discos mais ousados de Gal Gosta, de um show que ela fazia em uma garagem próxima ao Largo do Arouche, que eu vi quase dez vezes, acompanhada pelo Som Imaginário, de Zé Rodrix, em 1971, e saia encantado quando ela se despedia de mim dizendo "tchau, neguinho"...
   O Solar da Fossa era, na verdade, um caldeirão criativo da contracultura brasileira.... E, com certeza, vai inspirar mais obras, mais livros, filmes e músicas. Um livro delicioso de ler, mesmo que com algumas imprecisões, e até certa superficialidade inevitável; mas  inspirador sem ser nostálgico, uma referência obrigatória para este final de férias...
   Fossa, no sentido negativo, é não ter memória, é não preservar as curtições do passado para gerar criações no futuro... E este livro de Toninho Vaz cumpre bem sua missão, resgatar um dos períodos mais criativos da cultura brasileira, das origens de uma contracultura no Brasil...

quinta-feira, 7 de julho de 2011

I Congresso Internacional de Criatividade.Inovação

   Foi realizado entre os dias 29 de junho e 1º de julho de 2011, na cidade de Manaus, Amazonas, nas dependências da Unversidade Federal do Amazonas, o I Congresso Internacional de Criatividade e Inovação - Visão e Prática em diferentes contextos (I International Creativity and Innovation Conference: Practices and Visions). Promovido pela Associação Brasileira de Criatividade e Inovação (CRIABRASILIS), em associação com a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), reuniu vários pesquisadores de várias partes do Brasil e do mundo para discutir em ambiente acadêmico as diversas possibilidades que envolvem a criatividade, tanto em uma perspectiva histórica quanto, principalmente, sua atualidade desde os anos 1950, em que o tema se tornou uma agenda essencial.
   Reunindo artistas, escritores, pesquisadores, administradores, trouxe para o Brasil o que antes era exclusividade de encontros, como os que se realizavam na Universidade de Buffalo (Estado de Nova York), durante os anos 1990, através dos vários CPSI - Creative Problem Solving Institute, ou em iniciativas isoladas, como as realizadas nas dependências da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP/SP, sob coordenação do Professor Victor Mirshawska, um dos pioneiros no tema no Brasil.
   Neste período, também se destacou uma pesquisadora da PUC - Campinas, que realiza uma pesquisa sobre criatividade há mais de trinta anos, e presidiu, assim como foi uma das principais organizadoras, deste Congresso: Profa. Dra. Solange Muglia Wechler, que também não apenas presidiu o encontro, como realizaou a conferência de encerramento. Autora de um livro já clássico sobre criatividade - Criatividade: Descobrindo e Encorajando (Campinas, SP: PSY, 1993), a professora Solange também participava dos encontros de Buffalo, onde tive a oportunidade de assistir uma de suas palestras. Em seu PHD na Universidade de Geórgia, EUA, sob orientação do Dr. E. Paul Torrance, um dos papas da criatividade desde os anos 1950, na mesma Universidade, Wechler consegue agora sua maior proeza, com apoio da UFAM: realizar um grande e internacional encontro no Brasl, e melhor ainda, nas margens de um rio que desemboca no Amazonas, contando com a participação, além de brasileiros do Brasil todo, de pesquisadores norte-americanos, italianos, espanhóis, portugueses, etc. Também destaca-se nesta empreitada, além dos vários apoios, a participação de Regina Lara S. Mello, atual presidente da CRIABRASILIS. Um primeiro passo, mas que deverá consolidar nos próximos anos uma referência na área, incorporanto várias outras instituições brasileiras, e não apenas acadêmicas.
   O Congresso pode contar, já em sua abertura oficial, com a participação do Dr. James Kauffman, da Universidade da Califórnia, São Bernardino (Califórnia State University at San Bernardino), Estados Unidos, que versou com humor sobre "The creative journey: from mini-c to Big-C", expondo como a creatividade pertence à nossa vida em todos os momentos, das pequenas soluções  criativas para os problemas do dia-a-dia (mini-c) até como interfere em nossas vidas as grande descobertas, de um Einstein a um Mark Zurkenberg, do Facebook (Big-C).
   Uma programação intensa, que obviamente, exigiu uma edição pessoal, para acompanhar as áreas de interesse mais específicas. Eu tive a honra de coordenar uma mesa-redonda intitulada "Inteligência, Criatividade, Contracultura", representando o programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie (EAHC-UPM), com a participação das pesquisadoras Sylvia Monasterios, que apresentou o tema "Inovação e Criatividade na Arte Urbana: o Graffiti de São Paulo" (mestranda no Programa de Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (EAHC-UPM), e Isabel Orestes Silveira, que falou sobre "Inteligência: Pensamento Criativo e Complexidade" (doutora pela PUC-SP e professora no Mackenzie). Minha participação se deu com a apresentação "As Portas do Céu e do Inferno - Inteligência, Criatividade, Contracultura".
   Uma mesa-redonda que se realizou no dia 1º de julho, próxima do encerramento do encontro, que contou com uma apresentação da Profa. Solange, desejando que muitos outros encontros se realizem, com a participação e representatividade como foi este.
   Que neste século XXI, que será o século do cérebro, da inteligência e da criatividade, muitos outros congressos como este possam se realizar, permitindo que vários pesquisadores, de várias áreas e interesses, possam se reunir para refletir sobre as perspectivias históricas, assim como sobre as possibilidades de futuro...

sábado, 4 de junho de 2011

Drogas e cultura: quebrando o tabu

  O documentário dirigido por Fernando Grostein Andrade, com o título Quebrando o tabu, que estreou nos cinemas brasileiros no dia 03 de junho de 2011, se insere desde já em um dos mais importantes lançamentos cinematográficos do ano. Importante pela forma, mas muito mais pelo conteúdo. O documentário, com a participação de vários ex-presidentes da República (Brasil, EUA, Colêmbia, México), escritor mundialmente famoso (Paulo Coelho), ator mexicano (Gael), um médico com experiência em presídios (Drauzio Varella), e principalmente ex-viciados e prisioneiros, não deixa margens a dúvida: é a favor da descriminalização das drogas "leves", apresenta dúvidas quanto à legalização geral, e não indica nenhum indício de fazer qualquer tipo de apologia; pelo contrário, também deixa claro que qualquer droga, incluindo as legalizadas, como o alcóol, faz mal à saúde.
   A droga é um problema de saúde pública, não de polícia!
   Emocionante em vários momentos, o filme tem na presença do sociólogo e ex-presidente da República do Brasil Fernando Henrique Cardoso uma espécie de âncora, tendo participado inclusive na elaboração do argumento do filme.
   É do escritor Paulo Coelho a frase mais importante do filme: o problema da droga é que ela tira do usuário o seu bem mais precioso, a capacidade de decidir
   Mas o documentário, em 80 minutos, não deixa escapar a atenção do espectador nenhum momento. Seja no Brasil, nos EUA, na Europa, o filme tem uma abrangência global, e deverá fazer uma importante carreira internacional (olha aí o Oscar tão aguardado!!!). As experiências em Portugal, na Holanda e na Suiça demonstram o que se tem que fazer a respeito.
   As demonstrações históricas da repressão, principalmente em governos republicanos norte-americanos (de Nixon a Bush), demonstram que quanto maior repressão, maior o consumo e fascínio. E com ele a violência do narcotráfico. Portanto, quebrar mais este tabu na tenra democracia brasileira, faz do filme um importante instrumento político. Sem proselitismo ou demagogia, sem moralismo ou hipocrisia, revela um jovem cineasta cuidadoso e refinado, mas principalmente corajoso em enfrentar um tema tão atual quanto necessário.
   Quebrando o tabu é um filme não só para ser visto e revisto, mas para ser debatido nas escolas, nos parlamentos, na sociedade como um todo:
  
   -  por pais preocupados com o destino de suas "crianças",
   - por pessoas que deveria zelar pelo bem-estar público (e não enriquecer inexplicavelmente),
   - por educadores em saber lidar com a questão,
   - por policiais que refletem sobre seu ofício,
   - por pesquisadores que buscam respostas,  das ciências "duras" às ciências humanas.
  
   Este é um filme que veio para ficar nos corações e mentes de todos que que se preocupam, e acreditam na possibilidade de se inventar, um mundo melhor.  Um filme obrigatório também para os que amam um bom e honesto cinema.
 

segunda-feira, 28 de março de 2011

O BEAT, O POP E A BATIDA DO ROCK - Bases estéticas da contracultura.

   Existe uma estética da contracultura? Mas o que se pode entender por estética? Sempre que abordo este tema com meus alunos, faço questão de afirmar que estética pode ser entendida através de duas palavras, e que, depois de souberem quais são, nunca mais esquecerão os sentidos da estética. Todos me olham com desconfiança, mas após eu dizer, e principalmente explicar, o significado da provocação pedagógica, concordam comigo.

   Estética pode ser explicada por duas palavas, e estas palavras são: Estética e estética!!!... Assim mesmo, a diferença se estabelece na grafia, estética com maiúscula e estética com minúscula. Estética como um campo da filosofia criado no século XVIII por Baumgarten e estética no sentido etimológico grego: "aesthesis", como recepção física de um estímulo, sensorial portanto, ligado ao plano da percepção. No primeiro caso, uma atividade intelectual ligada ao plano da história da arte, vinculada à categoria de crítica do juízo, no sentido kantiano. No segundo, vinculado às sensações corporais, que nutrem o gosto individual, do que se tem prazer ao ver, ler, ouvir, pegar, comer, o que mobiliza as cordas sensíveis do corpo, nem sempre, na maioria das vezes não, controlados pela razão.

   Então, é verdadeira a afirmação do senso comum de que gosto não se discute? No primeiro caso, social, gosto se discute em torno das hierarquias, cânones, estilos e escolas; então, se discute sim, se aprende, se estuda cono chinês na afirmação de Picasso. Ou se estabelece a arte como uma "coisa mental", no sentido que a deu Leonardo da Vinci. No segundo caso, subjetivo, no qual nem mesmo a própria pessoa tem controle sobre, gosto não se discute não, se lamenta, se respeita ou então se elabora no sentido psicanalítico. Embora, para o maior crítico de arte norte-americano do século XX, Clemente Greenberg, gosto nunca se discute, pois "juízos estéticos nunca podem ser comprovados"...

   Então, como fica uma interpretação para o plano da contracultura em um estudo histórico-cultural? O que vai se desenvolver aqui na seqüência é a relação entre os dois, do plano da arte, que influenciou a arte contemporânea, que se chama como tal, da relação entre a literatura beat, a pop arte e o rock'n'roll; e no plano das percepções, em que a nova sensibilidade, que se propõe anti-intelectual (não sem equívocos, como se irá discutir), propõe uma nova cultura...

   Este vai ser o tema a ser debatido na aula de hoje, 29/03/2011, com base em dois textos de Clement Greenber; um de 1938 ("Avant-garde & Kitsch") e outro de 1969 ("Avant-Garde attitudes: New Art in the Sixties"). É possível conciliar tendências tão diferentes em um mesmo período histórico, marcado pelo que o próprio Greenberg definiu como marcado pela "confusão". Mas não seria extamente esta a característica comum entre as atitudes de "vanguarda" no contexto da cotracultura?...

sábado, 12 de março de 2011

MARGARET MEAD E A CONTRACULTURA - RAÍZES ANTROPOLÓGICAS DE UMA REVOLUÇÃO CULTURAL

   No musical Hair (Rado/Ragni/MacDermot, 1968) há uma cena bem significativa: um casal de turistas visita a tribo de hippies. Enquanto o marido fotografa, a mulher, uma senhora, fala com a tribo, que desconfia dos dois. Ao falar, ela diz à plateia para que ao chegarem em casa, digam a seus filhos adolescentes, para serem livres, para fazerem o que quiserem, desde que não fizessem mal aos outros, nem a si mesmos. E que era amiga de todos aqueles hippies, para depois cantar "My conviction". Esta presença inusitada foi explicada pelos autores posteriormente como uma homenagem à antropóloga Margaret Mead (1901-1978), ainda viva quando da estreia da peça na Broadway, NY.

   Em janeiro de 1970, quando colaborava na revista Redbook, em parceria com Rhoda Metraux desde 1969, publicou um texto intitulado "Woodstock em retrospecto", onde dizia que aqueles três dias do Festival de Música e Arte representava uma mudança; os jovens iam ali por espontânea vontade e falavam uma "linguagem de confiança mútua". E que o "verdadeiro acontecimento" que foi Woodstock representava uma nova percepção. Uma "percepção por parte desses 'aquarianos', que consideram a primeira geração de uma nova idade da paz, de que têm uma voz, um princípio viável, uma comunidade de interesses". E, por fim, uma constatação de que ninguém poderia afirmar qual seria o desfecho, mas que se poderia confirmar uma esperança de "ter fé na comunidade de sentimento que fez tantos dizerem daqueles três dias: 'foi lindo.'"

   Ficava claro em seu texto entusiasmado, que a antropóloga entendia aquele movimento - o da contracultura - como a confirmação de uma tese que ela defendia desde os anos 1920, quando iniciou sua carreira vitoriosa enquanto viva, a de que os jovens poderiam ser mais livres, inclusive sexualmente, e, portanto, mais felizes. Margaret Mead começou sua trajetória acadêmica ainda muito jovem, como orientanda de Franz Boas na Columbia University (NY), ao fazer em 1925 uma pesquisa com jovens das Ilhas de Samoa, e que foi publicada em 1928 com o título "Coming of age in Samoa" (algo como "Chegando a maturidade em Samoa", e que foi traduzida como "Adolescência em Samoa"), tendo com subtítulo "A Psychological Study of Primitive Youth for Western Civilisation". Entusiasamada com Freud, principalmente o de "Totem e Tabu", publicado em 1912, para desgosto de seu orientador, seu romântico relato se tornou o primeiro best-seller de um trabalho oriundo do meio acadêmico, e a jovem antropológa se tornou uma celebridade.

  Mas qual era a tese que causou tanto sensação quanto críticas ferozes? A de que a vida sexual das pessoas depende da cultura em foram criadas; e que, portanto, eram  normas culturais que poderiam ser diferentes das impostas por gerações. E que os jovens de Samoa era mais felizes porque mais livres do que os jovens norte-americanos submetidos a uma cultura repressiva e religiosa. De uma certa forma, os estudos de Mead faziam parte de um processo cultural de criação da juventude, uma categoria social que se tornou uma realidade com a geração nascida no contexto da II Guerra Mundial (1939-1945), principalmente depois de seu término, e que ficou conhecida como a Geração do "Baby-Boom". A geração que promoveu a revolução cultural conhecida pelo nome de contracultura. O objetivo deste texto, em construção, é o de desenvolver uma demonstração sobre as bases antropológicas da contracultura, tanto no aspecto intelectual e acadêmico quanto, principalmente, no plano sócio-cultural.

   Este processo, que pode ser estudado pela história cultural, envolve vários níveis em torno do período histórico conhecido como modernidade. Fruto da revolução industrial, das transformações urbanas e da consolidação de uma cultura burguesa, a passagem do século XIX ao século XX, conhecido como consequência da uma revolução científico e tecnológica sem precedentes, este período foi marcado por várias descobertas e novas áreas de pesquisa, entre elas; a antropologia, a psicanálise e a sociologia. Na antropologia, Franz Boas como um dos mais importantes nomes; na psicanálise, através de seu criador, Sigmund Freud; e na sociologia, a contribuição de Durkheim entre outros. Em 1900, a publicação de "A interpretação dos sonhos" abre caminho para o desenvolvimento de uma nova "ciência", que tem para os objetivos deste texto, o livro "Totem e Tabu", publicado em 1912, como um desafio importante para o desenvolvimento da antropologia. E, no caso da antropologia, a publicação de "A mente do ser humano primitivo", de Franz Boas, em 1911, indica um caminho para a importância das condições culturais para os padrões morais estabelecidos pela sociedade e impostos a seus membros, entre eles o racismo, os códigos de conduta e os níveis de felicidade alcançada. Não se entende as bases intelectuais em que a jovem Margaret Mead se formou sem a presença destes nomes, com os quais ela declara em seu trabalho juvenil ter intimidade.

    Menos de 5 anos depois da morte de Margaret Mead, em plena era Reagan, outro antrópologo, Derek Freeman, publica um livro que questionava toda carreira de Mead a partir de uma pesquisa realizada em Samoa em que afirmava que o "mito antropológico" havia sido construído em torno de mentiras. Freeman afirmava que a tese de Mead era mais ideológica do que científica, que ela havia sido enganada pelas meninas de Samoa, que não havia liberdade sexual coisa nenhuma, que as meninas brincavam com a pesquisadora ingênua. Ingênua ou oportunista?  Que via naquela história uma boa chance de avalancar uma carreira acadêmica, construindo um dos maiores embustes na história da antropologia. A crítica contundente era suficiente forte, e documentada, para destruir qualquer carreira. Ocorre que Margaret Mead estava morta e não podia se defender. Embora tenha havido os que a defenderam, sua reputação ficaria manchada irremediavelmente.

   Mas, por que o antrópologo nutria tanto ódio à antropológa que havia marcado época? Pelo feminismo dela? Pela defesa da liberdade sexual? Por ter influenciado tantos jovens, que aderiam à contracultura? Uma coisa é certe: se ideologia havia, ela ocorria em ambos. Uma, revolucionária; outra, conservadora. Na história cultural não existem culpados nem inocentes, existem agentes, conscientes ou inconscientes, de projetos de arte, educação e cultura que visam transformar a sociedade ou que mantenam situações inalteradas. Nem todo mundo é inocente, nem todo mundo é culpado, mas ninguém fica impune com suas opções intelectuais, morais ou estéticas. O estudo da relação de Margaret Mead com a contracultura visa exatamente isto: entender como as ideias inovadoras interferem no plano da realidade social; e na busca das bases antropológicas para o surgimento da contracultura, a pesquisa intelectual e acadêmica da antropóloga ousada não pode passar despercebida. Pode até ser uma questão de "conviction", mas os fatos demonstraram uma utopia ser possível. Sim, eles puderam. "Yes, we can"...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO

                    DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO
                             Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares

   O objetivo desta disciplina optativa para pesquisadores do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (EACH-UPM), visa desenvolver junto a pesquisadores - mestrandos e doutorandos -,  estudos sobre a Contracultura, com ênfase nas manifestações intelectuais, estéticas e morais nos anos 1960, em escala global, particularmente na relação entre os Estados Unidos da América e o Brasil.
 
   O conteúdo programático contêm desde as questões metodológicas compatíveis a um projeto de pesquisa interdisciplinar em Cultura e Artes, até um roteiro para pesquisas empíricas necessárias no âmbito da História Cultural, sobre um período que pode ser bem definido: 1967-1969. Mais exatamante, do ponto de vista factual, entre o que ficou conhecido como o "verão do amor" em São Francisco - com manifestações que na verdade tiveram início em janeiro, mais exatamente no dia 14, uma tarde quente de sábado, apesar de ser em pleno inverno (Cf. Paul Friedlander, em "Rock and Roll. Uma história social"), quando ocorreu o Gathering of Tribes (Encontro de Tribos), no Parque Golden Gate, durando o ano todo através de vários eventos esporádicos - , até o Festival de Altamont, também em São Francisco, em dezembro de 1969, quando da apresentação tumultuada da banda The Rolling Stones, em que um espectador negro foi morto a facadas por um Hell's Angel, membro de uma gang de motoqueiros que ficou célebre por sua violência e por sua característica registrada em um livro, hoje um clássico da contracultura, do jornalista e escritor Hunter S. Thompson (saiu uma bela edição de bolso pela L&PM de Porto Alegre, assim como já tem uma edição da Conrad do Brasil, uma editora especializada em publicações contraculturais).

   Este período emblemático é revelador das características do movimento cultural, mas suas consequências vão além dele, assim como suas raízes mais profundas podem ser encontradas ainda no século XIX, quando começa a se construir uma nação fundamentada em um sonho, o chamado "American Dream", uma mistura de ideologia e de utopia, que tanto possibilitou perspectivas no campo da direita, como o uso individual de armas, como no campo do que ficou conhecido como a Nova Esquerda (New Left), de onde surgiram muitos dos que se insurgiram contra o establishment, ou seja, o movimento conhecido como Contracultura.

   A disciplina "Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares" (EAHC-UPM), com o título metafórico de "DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO",  vai abordar tanto, e principalmente, as bases sócio-culturais que permitiram a emergência de um movimento tão poderoso e influente, quanto as questões problemáticas que envolvem seu legado. O conceito básico vai ser compreendido dentro de uma definição de cultura como Bildung, conceito alemão criado no Iluminismo, que entende a cultura muito mais como perspectiva individual transformadora, que a tradução do conceito pode explicar, como Formação Moral, Estética e Intelectual. Entre o "espírito da época" (Zeitgeist) e Civilização (Kultur), uma possibilidade de subversão dos valores dominantes, que teve no romantismo, para o bem (democracia e liberdade) e para o mal (nazismo), seu momento deflagrador.

   Portanto, a contracultura, cujos "hippies" são a parte mais visível, pode ser entendida como um movimento de fundo romântico, o que explicam as mensagens, tanto verbais ("Make Love, Not War"), como visuais, além das sonoras e dos gestos corporais, de "paz & amor". Mas nem tudo foi marcado por flores, paz e amor no contexto. Atos de violência (como do grupo armado The Weatherman, que realizava ações terroristas), exageros no uso das drogas (que o professor de Harvard Timothy Leary condenava sem ambiente propício e pessoas preparadas para acompanhar experiências com drogas lisérgicas, apesar de ter sido demitido e preso), irracionalidade compulsiva (como idealização da esquizofrenia e psicoses), desconfiança do pensamento racional e lógico, atração pelo ocultismo e satanismo (como o fascínio por Aleister Crowley, por exemplo, que até está homenageado na capa do Sgt. Peppers, dos Beatles); tudo isso pode ter contribuído para o que,  mesmo entre seus adeptos mais fervorosos, alguns considerem a contracultura como um movimento fracassado, no mínimo, em fase de um retrocesso.

   Até Luiz Carlos Maciel, um dos mais importantes intelectuais brasileiros quando se trata do tema, desenvolve em seu livro, As quatro estações (Rio de Janeiro, Record, 2001), uma visão pessimista sobre o desdobramento da contracultura no contexto que ele chama de "outono", baseado em Splenger, como ocaso ou decadência, com a vitória da "alienação" e da "reificação", como em bases marxistas (principalmente Lukács), ele explica com bastante pertinência, mesmo que possa ser contraditado. E vindo dele, deve se levar a sério a advertência. Discutí-la sem medo, no mínimo.

    Para completar, já que se falou aqui de Maciel; a disciplina também vai abordar a contracultura no Brasil. De um ponto de vista mais rigoroso, pode-se até desconfiar que a contracultura no Brasil, assim como a democracia (como já alertou o historiador Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), não passou de mais um mal-entendido. Tem uma experiência estética significativa, hoje reconhecida internacionalmente, como o caso do tropicalismo, muito bem estudado por vários pesquisadores, como o importante livro do  pesquisador norte-americano Christopher Dunn, da Tulane University, de Nova Orleans: Brutalidade Jardim. A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009). O livro de Dunn demonstra com muita propriedade como o tropicalismo representou um avanço na cultura brasileira, marcado por uma originalidade estética ao mesmo tempo extremamente contemporânea das experiências internacionais, e simultaneamente, não como cópia ou reflexo. Mas, se no plano estético a contracultura no Brasil teve um papel destacado, o mesmo não se pode dizer, até prova em contrário, que pesquisas empíricas poderão demonstrar, com relação a outros aspectos, mais tímidos.

   Pode-se até dizer, não sem margem de riscos, que a contracultura no Brasil foi muito superficial quando se pensa nas transformações dos costumes (curioso isto, num país abaixo do Equador, onde se dizia na época colonial que não haveria pecado) e até da vida intelectual, ainda bastante provinciana, apesar das exceções de sempre. É próprio da cultura brasileira, tão rica e multicultural de um lado, e talvez até por causa disto, também ter como uma de suas características uma capacidade de importar sem critério, hospedar sem rigor, também uma das características da "cordialidade" apontada por Sérgio Buarque em seu livro classico, e também muitas vezes mal-interpretado. Importamos com facilidade quase tudo, de bugigangas a valores. Por exemplo, no momento estamos importando através de alguns orgãos da grande imprensa, a retórica retrógrada do Tea Party norte-americano (que se considera herdeiro das tradições libertárias norte-americanas, incluindo a contracultura, mas no fundo não passa de um movimento de extrema-direita que busca uma nova roupagem para a intolerância, o racismo e a xenofobia, uma espécie de Ku-Klux-Kan sem fantasias brancas de fantasmas e archotes com fogo assombrando pobres negros). Hoje eles elegeram Obama como alguém a ser linchado. O fato dele ser o primeiro presidente negro eleito nos EUA deve ser mera coincidência...

   Mas nem sempre a importação pode ser considerada negativa, claro, como combatiam os nacionalistas mais extremados, pela direita ou pela esquerda. A própria democracia moderna deve ser sempre bem-vinda, a escravidão e o racismo não. Portanto, não há possibilidade de neutralidade, nem no pensamento que se julga científico, o acadêmico. A Academia não pode temer tratar qualquer tema, nem sofrer restrições ou constrangimentos pelos assuntos que pesquisa. E a contracultura é um tema delicado, envolve atividades ilegais, imorais, e algumas até engordam. Mas também a universidade não pode se tornar um centro de difusão ideológica, por mais avançada ou libertária que seja. O limite da possibilidade da pesquisa é o de obter conhecimento, com todas suas implicações. Pode-se até não se atingir a Verdade, no sentido dogmático (o que já é um contra-senso), mas esta meta nunca deve ser abandonada, mesmo que isto gere desconfianças do status quo, que não gosta de ser perturbado nunca.

  A contracultura é um tema, meu tema, tema da disciplina optativa, claro que não exclusivo, mas a meu ver extremamente profícuo para o desenvolvimento de um conhecimento interdisciplinar que tem tudo a ver com a contemporaneidade, não no sentido simplesmente cronológico, afinal se trata de um movimento já cinquentenário (se levarmos em conta que a literatura beat dá início ao movimento nos anos 1950), mas que aponta para os desafios da contemporaneidade, que é saber sim, não simplesmente acreditar, como queria o lógico Karl Popper - nada suspeito quando se trata de ideologia -, da posibilidade real e concreta de criar um mundo melhor. Um mundo melhor não só é possível, mas qualquer historiador pode comprovar que tem melhorado, e muito, principalmente nos dois últimos séculos, principalmente para os mais pobres, as mulheres, os negros, asiáticos, nordestinos no Brasil, os homossexuais, enfim, todos os que os auto-intitulados "conservadores" tripudiam. Só os mal-intencionados, quase sempre no arco ideológico da direita, que sabem ganhar dinheiro com provocações baratas, que às vezes fazem sucesso com uma elite entediada, e gostam, com empáfia e arrogância sectária, de ridicularizar esta vocação humana para o desenvolvimento de todos seus potenciais: criativos, cognitivos e afetivos.

  É também sobre isto que o estudo da contracultura pode ajudar a revelar, e até ser um antítodo contra o veneno daqueles que esperneiam sobre um processo histórico  que não lhes agradam, por não admitirem que privilégios possam ser derrubados (eles não engolem a Revolução Francesa até hoje),  e não aceitam a ascensão de novos sujeitos da história, sejam eles operários, mulheres, negros ou jovens. Mas o ponto principal é que é uma utopia que ainda atrai a atenção de muita gente, principalmente jovens curiosos sobre aqueles anos loucos, aquela Geração do Amor, que buscou abrir várias portas, da percepção à expansão da consciência. Que cometeu muitos erros, abusou da própria natureza que dizia defender, mas que acreditou na possibilidade da humanidade viver em paz, feliz e serena. E isto não é pouco, por isto pede para ser estudado em preconceitos ou ranços dogmáticos, sejam conservadores (eufemismo de direita) ou esquerdistas (muitas vezes tão conservadores quanto, ou seja, direitistas no autoritarismo e dogmatismo).

    Além, é claro, do prazer renovado de  poder ler e reler Aldous Huxley, de assistir novas montagens do musical Hair (como esta belíssima montagem que está sendo apresentada no Teatro Oi Casa Grande, no Rio de Janeiro, e que deve vir para São Paulo no segundo semestre de 2011, já comentada neste blog), de rever o filme "Sem Destino", e de ouvir sempre Jefferson Airplane, na bela voz da bela e graciosa, apesar do pleonasmo, Grace Slick, cantando "Somebody to love", seja através de imagens do Festival de Woodstock, o maior evento contracultural da história, e que virou filme. Ou no som do carro enquanto enfrentamos um trânsito maluco na "melhor cidade da América do sul", como diria um legítimo representante da contracultura no Brasil, o então tropicalista Caetano Veloso, autor de "Baby", onde também podemos ouvir na bela voz da também bela Gal Costa...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Hair, mais de 40 anos depois

   Se eu tivesse que definir qual o espetáculo teatral que marcou minha vida, eu não teria dúvidas em afirmar que -  apesar do reconhecimento da importância do Teatro de Arena, que vi poucas montagens na minha juventude, nos anos 1970, e do Teatro Oficina, que me marcou mais, não só pelo teatro, mas por ter assistido naquele espaço o filme "O Demiurgo", de Jorge Mautner -  a peça que vi quase 10 vezes, talvez mais, foi a montagem brasileira, com direção de Ademar Guerra com versão de Renata Palottini, da ópera-rock "Hair". E é por isto que fiquei muito feliz em assistir esta nova montagem que está sendo apresentada no teatro Oi Casa Grande, Rio de Janeiro.

  A montagem de 1970  ficou mais de 2 anos em cartaz, e , dividiu as opiniões na época, como diz a própria Renata Palottini em texto publicado na revista Palco + Platéia , em março de 1972: "Tem-se dito reiteradamente que na história do sucesso de "Hair" contam apenas as espetaculares  encenações apresentadas em todo o mundo, a famosa (e hoja superada) cena do nu, e, por fim, a música de Galt MacDermot, por sua qualidade e poder de comunicação, sustentaria todo o espetáculo e bastaria para mantê-lo em cartaz indefidamente..."

   "Hair" chegou a ser acusada de "reacionária" e "alienante". A esquerda, armada, festiva ou reformista, não via com bons olhos aquele "modismo" importado do "imperialismo norte-americano". A direita, que estava no governo através de uma ditadura também não aceitava aquela "bandalheira" de "hippies amaconhados". Mais de 40 anos depois, será que ainda restam preconceitos contra esta peça extraordinária que revolucionou os musicais da Broadway com uma mensagem nova e politizada?

   Algumas coisas me intrigam. Caetano Veloso não a cita em seu livro "Verdade tropical". Será que ele a viu em Londres?  Sei que assistiu a nova versão brasileira em meados de janeiro de 2011, subiu ao palco para dançar, e segundo o site da peça, adorou a montagem e se emocionou, mas ainda  não manifestou opinião em sua coluna no O Globo aos domingos. Espero que comente logo para sabermos como Caetano Veloso viu não só esta montagem, mas também a importância histórica da peça. Como sempre, vou ler sua coluna nos próximos domingos, e se publicar algo, comento aqui.

   Outra questão é porque o intelectual brasileiro mais importante quando se trata de contracultura no Brasil - às vezes chamado de "guru da contracultura", que ele parece não gostar - não comentou, ou eu ainda não achei uma opinião sua  - importante como a dele - sobre a peça. Claro que me refiro ao jornalista Luiz Carlos Maciel, um dos fundadores de O Pasquim e autor de vários livros decisivos sobre a contracultura. Minha próxima postagem aqui, por sinal, vai ser, sobre o livro de Maciel intitulado  "As quatro estações" (Record, 2001), em que ele faz um balanço, utilizando-se de metáforas das estações do ano, sobre  contracultura, suas conquistas e frustrações. 

   Talvez a explicação deste silêncio (pelo menos até prova em contrário) de dois dos mais importantes protagonistas da contracultura no Brasil seja uma questão etária. Maciel nasceu em 1938, e Caetano em 1942. Sujeitos importantes desta história cultural, não precisaram do insight com a peça porque já estavam inseridos no centro da tormenta, como os nascidos no final dos anos 1940 e começo de 1950, que sofreram o impacto das transformações culturais iniciado pela geração anterior, de beatniks a existencialistas. Por isso, a opinião deles neste momento, será importante neste balanço de um período e sua relação com a história que se pode fazer, principalmente diante de novas leituras sobre "Hair", que esta nova e belíssima montagem permite.

   Desde 2010, mais de 40 anos depois, na trilha do novo sucesso em Nova York de 2009, "Hair" tem outra montagem de enorme sucesso no Rio de Janeiro, teatro Oi Casa Grande, a qual pude assistir no dia 11/12/10, sessão das 21h30m, sob direção de Charles Möeller e versão brasileira de Claudio Botelho, realização de Aventura Entrenimento, que muitos musicais tem produzido com qualidade no Brasil. Um elenco jovem, talentoso, de músicos, dançarinos, cantores, além de atores, é claro, que se destacam como revelações em vários campos da interpretação e, com certeza, estarão em evidência nos próximos anos. Como a própria crítica exigente (e bota exigência nisto desta shakespearena que assusta tanta gente) Bárbara Heliodora qualificou, um espetáculo envolvente, eficiente e espetacular. Altamente profissional, eu diria. E isto é um elogio, claro.

   Foi emocionante assistir "Hair" mais de 40 anos depois. Uma peça  realmente "timeless", como a definiu Jonathon Johnson, autor do livro "Good Hair, Days - A personal journey with the American Tribal Love-rock Musical Hair" (iUniverse, Inc, 2004), que participou como ator em várias montagens norte-americanas, na  maior parte das vezes como Claude, o personagem que se insere no grupo de hippies, mas que vive a crise hamletiana ("Where do I go?") de se apresentar ou não para servir o exército e ir para o Vietnã.  Papel que na versão da Broadway de 1968 foi interpretado por um dos autores, James Rado, e na versão brasileira original coube ao ator Armando Bógus; e nesta, do Rio, ao ator Hugo Bonemer (primo do jornalista William Bonner, do JN da Globo).

   Nos meus 19 anos, cabeludo, com calças jeans  de boca-de sino (ou pata-de-elefante), bata indiana e tênis sujos, escola pública no ensino médio num bairro da periferia de São Paulo, "Hair" dizia tudo o que me interessava sobre meu tempo (incluindo o desconforto de viver sob um regime ditatorial, ao defender a liberdade em quaisquer circunstâncias, o que não vivíamos); e, agora, na proximidade da horrivelmente chamada de 3ª idade (pior ainda, a demagógica definição de "Melhor idade"; só quem não leu Phillip Roth pode aceitar uma bobagem desta), vejo uma montagem extraordinária, colorida, bela, entusiasmante, apaixonante, e percebo não ter perdido meu tempo nesses anos todos. Valeu a pena esperar, e principalmente viver tanto tempo - para quem achava que não chegaria ao ano de 2001 para confirmar se o filme de Kubrick estava correto -  para ter a certeza de que a vida, com todos seus percalços e dificuldades, vale a pena ser vivida. E, é claro, neste momento, em que vivemos em pleno quadro democrático, mesmo com tantas conquistas a serem alcançadas,  vale a pena ir ao Rio de Janeiro, a cidade mais bela do planeta, para ver a peça, curtir uma praia, e sentir uma cultura viva, com todas suas contradições expostas, como se sabe.

   Mas é muito difícil comparar as duas montagens - como lembra o filósofo Heráclito, um homem nunca se banha em um mesmo rio - ; principalmente, pela experiência estar tão distante. Além disso, a montagem atual tem uma vantagem sobre aquela por uma simples razão: o clima é outro, os riscos são menores e a a capacidade técnica é mais apurada. A montagem de Ademar Gerra, se a memória não me trai, apesar de tantas vezes vista, parece-me mais tosca, mais selvagem, mais rudimentar, o que quer dizer, mais compatível com a mensagem hippie, embora os atores parecerem velhos para os papéis de jovens na faixa dos 20 anos (segundo Paulo Francis, em O Pasquim, eram hippies da 2ª Guerra Mundial...).

   Esta montagem, por sua vez, é mais apurada, mais colorida, até mais vibrante, mais para Broadway do que para off-Broadway, como foi em sua origem em 1967, antes de ser produzida para um dos templos do mainstream. Portanto, não tem sentido estabelecer um juízo de  valor, tipo "qual a montagem melhor"; e sim, deixar a memória curtir os bons momentos (inclusive os  inventados e imaginados) e aproveitar mais vezes esta possibilidade que nos está sendo oferecida neste momento.

   Mas, para não terminar sem um comentário, quero destacar dois momentos: o da visita de um casal de turistas e o da cena tão comentada do nu.

   A visita dos turistas à tribo de hippies, uma senhora e um senhor munido de uma máquina fotográfica, lembra o título do belo livro de memórias de Patti Smith, "Só garotos" (Companhia das Letras, 2010). Patti Smith, a roqueira que viveu intensamente o período com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, em plena NovaYork dos anos 1960/1970, em que a revolução cultural era completa, no plano moral, estético e intelectual. Patti Smith conta que andava pelas ruas da cidade com Mapplethorpe, os dois vestidos quase em andrajos, cabeludos e sujos, quando um casal de turistas, achando-os exóticos, quis fotografá-los como animais em um zoológico, até que um deles exclamou: "Just Kids!", o título original do livro.

   O casal em "Hair" tem um papel importante, e a senhora foi inspirada explicitamente na antropóloga Margaret Mead, que diz à platéia que deixe seus filhos viverem a liberdade sem medo.  O interessante é que o papel, tanto na versão atualizada norte-americana, como na brasileira, é representado por um membro da tribo (no caso brasileiro, em extraordinária atuação de Danilo Timm) travestido na famosa antropóloga que foi decisiva desde os anos 1920 no debate acadêmico sobre a construção cultural dos papéis sexuais. A verdadeira Margaret Mead, poucos anos antes de morrer, chegou a escrever sobre a beleza que foi o festival de Woodstock, que segundo ela lembrava perigrinações medievais... (nas próximas postagens devo escrever sobre a importância, e as polêmicas causadas pelas pesquisas da antropóloga).

   Agora, na cena do nu, a memória é mais forte (ou mais enganosa, não sei). Lembro-me de que era uma cena belíssima, em que os atores que surgiam nus, apareciam debaixo de um grande pano branco, após o Hare Krishna e distribuição de margaridas, como se nascessem (ou renascessem) como flores. E nesta montagem atual, mais fiel talvez à montagem da Broadway, e com quase certeza também ao texto original, as atrizes e os atores, nem todos (Jonathon Johnson em livro citado, diz que era opcional a cada apresentação, o que faz sentido), simplesmente tiram a roupa diante do público.

   O efeito é diferente, a meu ver. Na 1ª, estetizante, talvez mais erótica; na 2ª, mais política, mais literal, mais distanciada. Mas isto não é uma opinião, apenas um registro. Entendo a opção atual, mas minha memória erótica registra com mais força a opção de Ademar Guerra. E isto pode ter, como diria Freud, mais a ver com a memória do que com a verdade. De qualquer forma, que maravilha poder ver, e não simplesmente rever, a montagem atual da peça "Hair", que marcou minha vida, não sei se minha geração, no plano coletivo e objetivo; mas, no plano subjetivo, eu não tenho dúvida. Mas esta montagem em que Moëller e Botelho nos oferecem faz jus a toda esta história, em um espetáculo vibrante, emocionante, competente, no qual vale a pena, em qualquer idade, subir ao palco no final do espetáculo para cantar o "Deixe o sol entrar..."

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cultura e contracultura - artigo na revista Facom.

http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_21/martin.pdf

Começando um blog

O começo é sempre difícil, e começar a postar um blog que pretende ser diversificado, com foco na cultura e contracultura, é mais difícil ainda. Aqui deverá ser um espaço de textos perdidos em várias publicações, em projetos de novos livros, mas também de diálogo e de polêmicas sobre assuntos que vão da história ao cinema, do pensamento social às políticas culturais. Uma visão pessoal de vários assuntos buscando interlocutores atentos e aspirando a se relacionar com o século XXI. Tudo como um aprendizado de uma (nem tão) nova (pelo menos para mim, sempre atrasado quando se trata de novas tecnologias) ferramenta de comunicação com pessoas de várias tendências, orientações e objetivos; de amigos a alunos, de pesquisadores a curiosos, de pessoas queridas a desafetos, todos tratados com o respeito que merecem, esperando, claro, reciprocidade, mas sem fugir dos temas difíceis, nem temer o erro. Como disse, é uma visão pessoal com todas limitações possíveis, imaginaveis e inimagináveis. Bem-vindos ao meu blog, conto com vocês!