Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Existe vida inteligente na televisão? O caso de "Cordel Encantado"

   Em curso de Pós-graduação Latu Senso na FAAP, Gestão e Produção Executiva em Televisão, leciono em alguns sábados a disciplina Crítica de Televisão. Foi uma ideia do professor Vagner Matrone, coordenador do curso, pois julga importante os pós-graduandos em gestão de televisão terem contato também com uma visão intelectual e acadêmica sobre o tema, já que  o curso é voltado para profissionais. Entre os temas que desenvolvo, destaco conceitos de cultura, entretenimento, contracultura e finalmente, uma provocação, a partir de uma pergunta: existe vida inteligente na televisão?
   No último sábado, 24/09/2011, última aula da turma 8, os grupos apresentaram seus trabalhos, e curiosamente, o que predominou nos temas dos projetos foi a pergunta provocativa. Minha expectativa - sem prejuízo na avaliação - é que predominasse meu maior investimento no conteúdo, que o tema sobre a compatibilidade ou não da contracultura com o mainstream.
   Mas o que predominou foram tentativas, algumas bem originais, em responder a questão de forma positiva. Foram projetos de programas "inteligentes".
  
   Curiosamente, no mesmo dia em que se encerrava uma das maiores surpresas dos últimos anos em matéria de mainstream: a telenovela "Cordel Encantado", no horário das 18 horas, na Rede Globo de Televisão.
   Dirigida por Amora Mautner, filha de Jorge Mautner, escrita por , dedicou a novela aos cordelistas e tropicalistas, "que nos reinventaram"...
   E sobre o que pretendo escrever aqui na seqüência.....

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Revendo Sem Destino

   Na última  terça-feira, dia 06 de setembro, véspera do feriado da independência do Brasil, revi o filme "Sem Destino" (EUA, Easy Rider, Dennis Hopper, 1969) com alunos do Pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na disciplina optativa para mestrandos e doutorandos, "Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares", que divido com a professora Maria Aparecida de Aquino.
   Após o filme, tivemos um tempinho para discutir o filme, que já devo ter visto mais de vinte vezes. E cada vez que assisto, me emociono de uma forma diferente. Isto é o que define, segundo Ítalo Calvino, uma obra clássica. E "Sem Destino" é um filme clássico!!!...  Clássico por ser utilizado em uma sala de aula, mas também clássico porque quase todo mundo "letrado" em cinema contemporâneo já assistiu, ou pelo menos, já ouviu falar de um filme que conta a história de dois motoqueiros chapados que atravessam os Estados Unidos em busca de um carnaval em New Orleans.
   Clássico é para Calvino, referindo-se a livros, uma obra que quase todo mundo conhece mesmo sem ter lido, ou visto, mas principalmente é uma obra que a cada vez que é revista, é uma obra nova, surpreendente. E "Sem Destino" é isso, uma obra que apesar de ser extremamente datada (Dom Quixote também é), pode ser vista sempre como uma novidade.
   Lembro-me bem quando assisti o filme pela primeira vez, no início dos anos 1970 (não tenho certeza se em 1970 mesmo, ou início de 1971), em um cinema da Avenida Paulista (não tenho certeza, mas pode ter sido o Cine Astor, onde hoje é a Livraria Cultura). Estava só e deprimido; sem namorada, sem paixão, sem nada, um horror para um romântico como eu. Um jovem de 19 anos,  cabeludo meio metido a hippie, morando na periferia de São Paulo. Era um sábado, sem escola, sem trabalho, peguei os vários ônibus que me levavam a atravessar a cidade. Disse à minha mãe que não me esperasse para o almoço, só voltaria à noite. Assisti o filme na primeira sessão da tarde e fiquei pasmo, perplexo, emocionado.
   Impactado com o filme, não sai do cinema quando terminou a primeira sessão  para poder ver mais uma vez (naquele tempo se podia ficar no cinema quantas sessões quisesse). Ao término do reprise, já no final da tarde, sol se pondo, sai refletindo sobre o que tinha presenciado. Mas não me lembro o quê. Só me lembro que havia adorado o filme, mas que me deixava ainda mais melancólico, sem saber por quê. Alguma coisa no mundo acontecia. Mesmo assim, não voltei para casa. Comi um lanche, e entrei em outro cinema, para assistir um filme ainda mais pesado: "Perdidos na Noite" (EUA, "Midnight Cowboy", John Schlesinger, 1969).
   Hoje eu sei, em "Sem Destino", a viagem de Los Angeles a New Orleans; em "Perdidos na Noite", a chegada de dois sujeitos em Nova York. Muita informação em um dia só. Dois grandes filmes.
   Só voltei para casa no final da noite iluminado, triste, mas iluminado, um verdadeiro hipster. Será, ou isto é um mito, como diria Paulo Coelho, uma construção de uma lenda pessoal?...
  
   O tempo passou, claro, atingi a chamada idade da razão, e me afastei daqueles "delírios juvenis", mas "Sem Destino" sempre me emociona, sempre me intriga, sempre me faz pensar, principalmente agora que venho pesquisando a contracultura através de uma perpectiva interdisciplinar em cultura e artes.
  
   Vou tentar resumir como vejo o filme hoje.
   Dois sujeitos - Wyatt  (Peter Fonda) e Billy (Dennis Hopper) - compram drogas de um traficante, mais exatamente cocaína, e a revendem nas redondezas do LAX, o Aeroporto de Los Angeles, para um jovem milionário que chega em uma limousine. Com o dinheiro ganho, sabemos só pelas imagens, compram motocicletas novas - tenho dúvidas se são Harley Davidson mesmo -  e partem para a estrada, cujo destino só saberemos depois.
   Antes de entrarem na estrada, Wyatt, vestido de couro, com a bandeira dos Estados Unidos no capacete, nas costas e no tanque da moto, joga seu relógio fora, numa evidente alegoria de que o tempo não teria mais nenhuma importância para ele.
   Billy está de cowboy, com chapéu e jaqueta com franjas. Ao entrarem na estrada, surgem os letreiros ao som da banda Sttepenwolf, "The pusher" (o traficante). Não conseguem abrigo em motéis que se recusam a recebê-los. Acampam e fumam maconha. Param em uma fazenda para arrumar o pneu da moto de Wyatt.
   Cena emblemática: ao fundo, enquanto trocam pneu; à frente, dono da fazenda trocando ferraduras do cavalo. Nada mais claro, até ingênuo como o jogar do relógio à beira da estrada.
   No almoço, Wyatt fornece as pistas do que hoje vejo como decisivo no filme: elogia o fazendeiro por ser dono de seu terreno, de sua família grande, dono de uma liberdade invejável. O pequeno fazendeiro diz ser casado com uma católica, daí a família grande. A mulher, visivelmente uma latina, saí para pegar um café para todos, quando Wyatt diz o que pensa sobre a liberdade, a propriedade, a felicidade. Sempre suscinto, melancólico, preciso. Nas orações do almoço, vê-se que o fazendeiro é protestante, mas seu universo é mais amplo. Isto vai ser importante no decorrer do filme, em que caipiras hostilizam os dois motoqueiros, chegando até à violência, na morte do advogado George Hanson (Jack Nicholson, em papel memorável, que o revelou para o mundo) e as mortes no final.
   Mas antes do encontro com o advogado, eles dão carona a um hippie que lhes apresenta sua comunidade no meio do deserto. Há uma discussão entre os membros da comunidade sobre se devem aceitar mais moradores, porque não haveria condições. Há um clima estranho na comunidade, misto de alegria com uma preocupação sobre intrusos que poderiam trazer problemas àquela paz que não parece tão sólida assim. O próprio Billy se queixa a Wyatt que não se sente bem entre aquelas pessoas. O retrato parece honesto, mas nenhum um pouco idílico ou idealizado. Tudo caminha para o fracasso...
   Mesmo assim, são presenteados pelo líder da comunidade com pastilhas que ele diz que só devem utilizá-las em momento muito especial.
  
   O momento mais politizado do filme é exatamente o encontro com o advogado de direitos civis que encontram na cadeia. Sabemos que ele é filho de gente rica, mas um sujeito que acredita em discos-voadores e explica aos dois que a liberdade deles ofende a maioria das pessoas (leia-se norte-americanos), fazendo com que suas vidas corressem perigo. O que acabou custando à sua própria, quando resolve seguir Wyatt e Billy em sua aventura em direção ao Mardi Gras do carnaval de New Orleans. Antes de seu fim violento, o advogado alcóolatra dá-lhes um cartão de um dos mais famosos puteiros de New Orleans.
  Foi neste recinto de luxo falsificado e kitsh que o encontro com prostitutas demonstra com mais clareza a diferença de caráter entre os dois personagens: Billy se diz de Nova York e pede à Wyatt para que fique com a mais alta, buscando ir logo às vias de fato. As duas são bonitas, mas Wyatt não dá bola para sua parceira, que se queixa de seu desinteresse.
   O prédio em que estão é uma construção histórica, barroca, e se vê que Wyatt lê as mensagens nas paredes. Uma delas chama a atenção dele: "È na morte que se revela a reputação de um homem, se ele é correto ou não". Surge uma imagem que não sabemos se uma visão de Wyatt, ou um recurso narrativo do filme, mas logo saberemos que se trata de sua própria morte. Como Cristo nas oliveiras, Wyatt, o Capitão América pode ter previsto sua própria morte.
   Neste momento, Wyatt os convida para ir para as ruas, o que é acatado por todos.  É um momento do filme que registra como num documentário o carnaval de New Orleans: exuberante, dionisíaco e colorido. Mas é na sequência que o quarteto, já pela manhã, se dirige a um cemitério. Wyatt distribui as pastilhas como se fossem hóstias. Segue-se uma viagem de ácido, nenhum momento citado como a maconha em que até uma "aula" de como fumar tem na sequência do advogado. Mas a viagem não é propriamente boa, embora aspectos religiosos se destaquem. Pode-se dizer ser uma bad trip.
   O cenário do cemitério pode ter contribuído para tanto. Até uma cena de Pietá aparece, quando Wyatt está sentado no colo de uma estátua. A música, ou batida de estaca, reforça um ambiente sombrio. É uma bela sequência surrealista, um tanto assustadora, forte, erótica e mística.
   Após a experiência lisérgica, já sem as moças, os dois voltam à estrada. Não de volta à Los Angeles, mas em direção à Flórida, segundo o roteiro original, o destino deles é Key West, não citado no filme, conforme o belo livro de Lee Hill, Sem Destino (Rio de Janeiro, Rocco, 2000), que destaca o importante papel no filme do roteirista Terry Southern, que merecia mais destaque do que tem. 
   Na última parada, entre tragadas de maconha, Wyatt diz a Billy, eufórico com o que julga a vitória deles: "Nós estragamos tudo", para espanto de um Billy incrédulo.
   "Nós estragamos tudo", diz Wyatt.
   Mas, nós, quem?
   Nós, eles que buscaram um caminho livre?
   Um caminho fácil? 
   Nós, os adeptos da contracultura?
   Os hippies do deserto?
   O advogado dos direitos civis?
   Nós, quem, cara pálida?
   Quem estragou tudo?
   Apesar dos componentes religiosos no filme - lembra "Hair" no sentido da missa -, mas mais ainda a trajetória de Jesus Cristo. Hoje eu vejo que o principal foco, que talvez nem tenha sido intencional, dado às características de vanguarda do filme, premiado em Cannes, que lembra em alguns momentos o contemporâneo Glauber Rocha (talvez seja o recurso da alegoria), esteja nesta última frase do melancólico Wyatt:
   - "Nós estragamos tudo"...
   E revendo o filme, vejo com mais nitidez qual era a utopia vislumbrada desde o começo, na primeiro encontro com a família ecumênica, feliz e de bem com seu próprio destino. Ali estava o sonho não realizado, o sonho de um país que nasceu de peregrinos em busca de uma Terra Prometida, Promise Land, o sonho de uma terra llivre, de homens bravos e livres, ajustados à natureza, e de bem com Deus.
   É o american dream que facassou!...
   E a contracultura com ele, mesmo que tenha sido a última tentativa de ressuscitá-lo, mas forças poderosas o destruíram de vez, como os tiros de um caipira que impediu os motoqueiros de chegarem à Key West, como os bombardeios de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki ou de napalm no Vietnã, como as diversas e desastradas intervenções militares norte-americanas no mundo todo....
   Como na insistência em cultuarem as armas como se fossem a garantia da liberdade tão cantada, mas sempre ameaçada...
   "Easy Rider", Sem Destino, Easy Rider, caminhantes livres e soltos, leves e puros, realmente sem destino, à deriva, como um país que perdeu seu rumo e avança em direção ao abismo....
  Será esta uma boa leitura do filme?
  Ou mais uma de um filme que já nasceu clássico, que revolucionou Hollywood (veja o livro Como a geração sexo-drogas-e-rock'n'roll salvou Hollywood, de Peter Biskind, que trás detalhes deste contexto cinematográfico)?
   Não importa, neste momento, e com a ajuda de meus alunos, é a minha leitura, que pretende ser politizada, de "Sem Destino", sobre o qual pretendo rever sempre...
   Para terminar, "Sem Destino" é um filme que vale a pena ser revisto!!!...