Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Hair, mais de 40 anos depois

   Se eu tivesse que definir qual o espetáculo teatral que marcou minha vida, eu não teria dúvidas em afirmar que -  apesar do reconhecimento da importância do Teatro de Arena, que vi poucas montagens na minha juventude, nos anos 1970, e do Teatro Oficina, que me marcou mais, não só pelo teatro, mas por ter assistido naquele espaço o filme "O Demiurgo", de Jorge Mautner -  a peça que vi quase 10 vezes, talvez mais, foi a montagem brasileira, com direção de Ademar Guerra com versão de Renata Palottini, da ópera-rock "Hair". E é por isto que fiquei muito feliz em assistir esta nova montagem que está sendo apresentada no teatro Oi Casa Grande, Rio de Janeiro.

  A montagem de 1970  ficou mais de 2 anos em cartaz, e , dividiu as opiniões na época, como diz a própria Renata Palottini em texto publicado na revista Palco + Platéia , em março de 1972: "Tem-se dito reiteradamente que na história do sucesso de "Hair" contam apenas as espetaculares  encenações apresentadas em todo o mundo, a famosa (e hoja superada) cena do nu, e, por fim, a música de Galt MacDermot, por sua qualidade e poder de comunicação, sustentaria todo o espetáculo e bastaria para mantê-lo em cartaz indefidamente..."

   "Hair" chegou a ser acusada de "reacionária" e "alienante". A esquerda, armada, festiva ou reformista, não via com bons olhos aquele "modismo" importado do "imperialismo norte-americano". A direita, que estava no governo através de uma ditadura também não aceitava aquela "bandalheira" de "hippies amaconhados". Mais de 40 anos depois, será que ainda restam preconceitos contra esta peça extraordinária que revolucionou os musicais da Broadway com uma mensagem nova e politizada?

   Algumas coisas me intrigam. Caetano Veloso não a cita em seu livro "Verdade tropical". Será que ele a viu em Londres?  Sei que assistiu a nova versão brasileira em meados de janeiro de 2011, subiu ao palco para dançar, e segundo o site da peça, adorou a montagem e se emocionou, mas ainda  não manifestou opinião em sua coluna no O Globo aos domingos. Espero que comente logo para sabermos como Caetano Veloso viu não só esta montagem, mas também a importância histórica da peça. Como sempre, vou ler sua coluna nos próximos domingos, e se publicar algo, comento aqui.

   Outra questão é porque o intelectual brasileiro mais importante quando se trata de contracultura no Brasil - às vezes chamado de "guru da contracultura", que ele parece não gostar - não comentou, ou eu ainda não achei uma opinião sua  - importante como a dele - sobre a peça. Claro que me refiro ao jornalista Luiz Carlos Maciel, um dos fundadores de O Pasquim e autor de vários livros decisivos sobre a contracultura. Minha próxima postagem aqui, por sinal, vai ser, sobre o livro de Maciel intitulado  "As quatro estações" (Record, 2001), em que ele faz um balanço, utilizando-se de metáforas das estações do ano, sobre  contracultura, suas conquistas e frustrações. 

   Talvez a explicação deste silêncio (pelo menos até prova em contrário) de dois dos mais importantes protagonistas da contracultura no Brasil seja uma questão etária. Maciel nasceu em 1938, e Caetano em 1942. Sujeitos importantes desta história cultural, não precisaram do insight com a peça porque já estavam inseridos no centro da tormenta, como os nascidos no final dos anos 1940 e começo de 1950, que sofreram o impacto das transformações culturais iniciado pela geração anterior, de beatniks a existencialistas. Por isso, a opinião deles neste momento, será importante neste balanço de um período e sua relação com a história que se pode fazer, principalmente diante de novas leituras sobre "Hair", que esta nova e belíssima montagem permite.

   Desde 2010, mais de 40 anos depois, na trilha do novo sucesso em Nova York de 2009, "Hair" tem outra montagem de enorme sucesso no Rio de Janeiro, teatro Oi Casa Grande, a qual pude assistir no dia 11/12/10, sessão das 21h30m, sob direção de Charles Möeller e versão brasileira de Claudio Botelho, realização de Aventura Entrenimento, que muitos musicais tem produzido com qualidade no Brasil. Um elenco jovem, talentoso, de músicos, dançarinos, cantores, além de atores, é claro, que se destacam como revelações em vários campos da interpretação e, com certeza, estarão em evidência nos próximos anos. Como a própria crítica exigente (e bota exigência nisto desta shakespearena que assusta tanta gente) Bárbara Heliodora qualificou, um espetáculo envolvente, eficiente e espetacular. Altamente profissional, eu diria. E isto é um elogio, claro.

   Foi emocionante assistir "Hair" mais de 40 anos depois. Uma peça  realmente "timeless", como a definiu Jonathon Johnson, autor do livro "Good Hair, Days - A personal journey with the American Tribal Love-rock Musical Hair" (iUniverse, Inc, 2004), que participou como ator em várias montagens norte-americanas, na  maior parte das vezes como Claude, o personagem que se insere no grupo de hippies, mas que vive a crise hamletiana ("Where do I go?") de se apresentar ou não para servir o exército e ir para o Vietnã.  Papel que na versão da Broadway de 1968 foi interpretado por um dos autores, James Rado, e na versão brasileira original coube ao ator Armando Bógus; e nesta, do Rio, ao ator Hugo Bonemer (primo do jornalista William Bonner, do JN da Globo).

   Nos meus 19 anos, cabeludo, com calças jeans  de boca-de sino (ou pata-de-elefante), bata indiana e tênis sujos, escola pública no ensino médio num bairro da periferia de São Paulo, "Hair" dizia tudo o que me interessava sobre meu tempo (incluindo o desconforto de viver sob um regime ditatorial, ao defender a liberdade em quaisquer circunstâncias, o que não vivíamos); e, agora, na proximidade da horrivelmente chamada de 3ª idade (pior ainda, a demagógica definição de "Melhor idade"; só quem não leu Phillip Roth pode aceitar uma bobagem desta), vejo uma montagem extraordinária, colorida, bela, entusiasmante, apaixonante, e percebo não ter perdido meu tempo nesses anos todos. Valeu a pena esperar, e principalmente viver tanto tempo - para quem achava que não chegaria ao ano de 2001 para confirmar se o filme de Kubrick estava correto -  para ter a certeza de que a vida, com todos seus percalços e dificuldades, vale a pena ser vivida. E, é claro, neste momento, em que vivemos em pleno quadro democrático, mesmo com tantas conquistas a serem alcançadas,  vale a pena ir ao Rio de Janeiro, a cidade mais bela do planeta, para ver a peça, curtir uma praia, e sentir uma cultura viva, com todas suas contradições expostas, como se sabe.

   Mas é muito difícil comparar as duas montagens - como lembra o filósofo Heráclito, um homem nunca se banha em um mesmo rio - ; principalmente, pela experiência estar tão distante. Além disso, a montagem atual tem uma vantagem sobre aquela por uma simples razão: o clima é outro, os riscos são menores e a a capacidade técnica é mais apurada. A montagem de Ademar Gerra, se a memória não me trai, apesar de tantas vezes vista, parece-me mais tosca, mais selvagem, mais rudimentar, o que quer dizer, mais compatível com a mensagem hippie, embora os atores parecerem velhos para os papéis de jovens na faixa dos 20 anos (segundo Paulo Francis, em O Pasquim, eram hippies da 2ª Guerra Mundial...).

   Esta montagem, por sua vez, é mais apurada, mais colorida, até mais vibrante, mais para Broadway do que para off-Broadway, como foi em sua origem em 1967, antes de ser produzida para um dos templos do mainstream. Portanto, não tem sentido estabelecer um juízo de  valor, tipo "qual a montagem melhor"; e sim, deixar a memória curtir os bons momentos (inclusive os  inventados e imaginados) e aproveitar mais vezes esta possibilidade que nos está sendo oferecida neste momento.

   Mas, para não terminar sem um comentário, quero destacar dois momentos: o da visita de um casal de turistas e o da cena tão comentada do nu.

   A visita dos turistas à tribo de hippies, uma senhora e um senhor munido de uma máquina fotográfica, lembra o título do belo livro de memórias de Patti Smith, "Só garotos" (Companhia das Letras, 2010). Patti Smith, a roqueira que viveu intensamente o período com o fotógrafo Robert Mapplethorpe, em plena NovaYork dos anos 1960/1970, em que a revolução cultural era completa, no plano moral, estético e intelectual. Patti Smith conta que andava pelas ruas da cidade com Mapplethorpe, os dois vestidos quase em andrajos, cabeludos e sujos, quando um casal de turistas, achando-os exóticos, quis fotografá-los como animais em um zoológico, até que um deles exclamou: "Just Kids!", o título original do livro.

   O casal em "Hair" tem um papel importante, e a senhora foi inspirada explicitamente na antropóloga Margaret Mead, que diz à platéia que deixe seus filhos viverem a liberdade sem medo.  O interessante é que o papel, tanto na versão atualizada norte-americana, como na brasileira, é representado por um membro da tribo (no caso brasileiro, em extraordinária atuação de Danilo Timm) travestido na famosa antropóloga que foi decisiva desde os anos 1920 no debate acadêmico sobre a construção cultural dos papéis sexuais. A verdadeira Margaret Mead, poucos anos antes de morrer, chegou a escrever sobre a beleza que foi o festival de Woodstock, que segundo ela lembrava perigrinações medievais... (nas próximas postagens devo escrever sobre a importância, e as polêmicas causadas pelas pesquisas da antropóloga).

   Agora, na cena do nu, a memória é mais forte (ou mais enganosa, não sei). Lembro-me de que era uma cena belíssima, em que os atores que surgiam nus, apareciam debaixo de um grande pano branco, após o Hare Krishna e distribuição de margaridas, como se nascessem (ou renascessem) como flores. E nesta montagem atual, mais fiel talvez à montagem da Broadway, e com quase certeza também ao texto original, as atrizes e os atores, nem todos (Jonathon Johnson em livro citado, diz que era opcional a cada apresentação, o que faz sentido), simplesmente tiram a roupa diante do público.

   O efeito é diferente, a meu ver. Na 1ª, estetizante, talvez mais erótica; na 2ª, mais política, mais literal, mais distanciada. Mas isto não é uma opinião, apenas um registro. Entendo a opção atual, mas minha memória erótica registra com mais força a opção de Ademar Guerra. E isto pode ter, como diria Freud, mais a ver com a memória do que com a verdade. De qualquer forma, que maravilha poder ver, e não simplesmente rever, a montagem atual da peça "Hair", que marcou minha vida, não sei se minha geração, no plano coletivo e objetivo; mas, no plano subjetivo, eu não tenho dúvida. Mas esta montagem em que Moëller e Botelho nos oferecem faz jus a toda esta história, em um espetáculo vibrante, emocionante, competente, no qual vale a pena, em qualquer idade, subir ao palco no final do espetáculo para cantar o "Deixe o sol entrar..."

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cultura e contracultura - artigo na revista Facom.

http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_21/martin.pdf

Começando um blog

O começo é sempre difícil, e começar a postar um blog que pretende ser diversificado, com foco na cultura e contracultura, é mais difícil ainda. Aqui deverá ser um espaço de textos perdidos em várias publicações, em projetos de novos livros, mas também de diálogo e de polêmicas sobre assuntos que vão da história ao cinema, do pensamento social às políticas culturais. Uma visão pessoal de vários assuntos buscando interlocutores atentos e aspirando a se relacionar com o século XXI. Tudo como um aprendizado de uma (nem tão) nova (pelo menos para mim, sempre atrasado quando se trata de novas tecnologias) ferramenta de comunicação com pessoas de várias tendências, orientações e objetivos; de amigos a alunos, de pesquisadores a curiosos, de pessoas queridas a desafetos, todos tratados com o respeito que merecem, esperando, claro, reciprocidade, mas sem fugir dos temas difíceis, nem temer o erro. Como disse, é uma visão pessoal com todas limitações possíveis, imaginaveis e inimagináveis. Bem-vindos ao meu blog, conto com vocês!