Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO

                    DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO
                             Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares

   O objetivo desta disciplina optativa para pesquisadores do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura, na Universidade Presbiteriana Mackenzie (EACH-UPM), visa desenvolver junto a pesquisadores - mestrandos e doutorandos -,  estudos sobre a Contracultura, com ênfase nas manifestações intelectuais, estéticas e morais nos anos 1960, em escala global, particularmente na relação entre os Estados Unidos da América e o Brasil.
 
   O conteúdo programático contêm desde as questões metodológicas compatíveis a um projeto de pesquisa interdisciplinar em Cultura e Artes, até um roteiro para pesquisas empíricas necessárias no âmbito da História Cultural, sobre um período que pode ser bem definido: 1967-1969. Mais exatamante, do ponto de vista factual, entre o que ficou conhecido como o "verão do amor" em São Francisco - com manifestações que na verdade tiveram início em janeiro, mais exatamente no dia 14, uma tarde quente de sábado, apesar de ser em pleno inverno (Cf. Paul Friedlander, em "Rock and Roll. Uma história social"), quando ocorreu o Gathering of Tribes (Encontro de Tribos), no Parque Golden Gate, durando o ano todo através de vários eventos esporádicos - , até o Festival de Altamont, também em São Francisco, em dezembro de 1969, quando da apresentação tumultuada da banda The Rolling Stones, em que um espectador negro foi morto a facadas por um Hell's Angel, membro de uma gang de motoqueiros que ficou célebre por sua violência e por sua característica registrada em um livro, hoje um clássico da contracultura, do jornalista e escritor Hunter S. Thompson (saiu uma bela edição de bolso pela L&PM de Porto Alegre, assim como já tem uma edição da Conrad do Brasil, uma editora especializada em publicações contraculturais).

   Este período emblemático é revelador das características do movimento cultural, mas suas consequências vão além dele, assim como suas raízes mais profundas podem ser encontradas ainda no século XIX, quando começa a se construir uma nação fundamentada em um sonho, o chamado "American Dream", uma mistura de ideologia e de utopia, que tanto possibilitou perspectivas no campo da direita, como o uso individual de armas, como no campo do que ficou conhecido como a Nova Esquerda (New Left), de onde surgiram muitos dos que se insurgiram contra o establishment, ou seja, o movimento conhecido como Contracultura.

   A disciplina "Cultura e Contracultura - Relações Interdisciplinares" (EAHC-UPM), com o título metafórico de "DO VERÃO DO AMOR AO INVERNO DA DESILUSÃO",  vai abordar tanto, e principalmente, as bases sócio-culturais que permitiram a emergência de um movimento tão poderoso e influente, quanto as questões problemáticas que envolvem seu legado. O conceito básico vai ser compreendido dentro de uma definição de cultura como Bildung, conceito alemão criado no Iluminismo, que entende a cultura muito mais como perspectiva individual transformadora, que a tradução do conceito pode explicar, como Formação Moral, Estética e Intelectual. Entre o "espírito da época" (Zeitgeist) e Civilização (Kultur), uma possibilidade de subversão dos valores dominantes, que teve no romantismo, para o bem (democracia e liberdade) e para o mal (nazismo), seu momento deflagrador.

   Portanto, a contracultura, cujos "hippies" são a parte mais visível, pode ser entendida como um movimento de fundo romântico, o que explicam as mensagens, tanto verbais ("Make Love, Not War"), como visuais, além das sonoras e dos gestos corporais, de "paz & amor". Mas nem tudo foi marcado por flores, paz e amor no contexto. Atos de violência (como do grupo armado The Weatherman, que realizava ações terroristas), exageros no uso das drogas (que o professor de Harvard Timothy Leary condenava sem ambiente propício e pessoas preparadas para acompanhar experiências com drogas lisérgicas, apesar de ter sido demitido e preso), irracionalidade compulsiva (como idealização da esquizofrenia e psicoses), desconfiança do pensamento racional e lógico, atração pelo ocultismo e satanismo (como o fascínio por Aleister Crowley, por exemplo, que até está homenageado na capa do Sgt. Peppers, dos Beatles); tudo isso pode ter contribuído para o que,  mesmo entre seus adeptos mais fervorosos, alguns considerem a contracultura como um movimento fracassado, no mínimo, em fase de um retrocesso.

   Até Luiz Carlos Maciel, um dos mais importantes intelectuais brasileiros quando se trata do tema, desenvolve em seu livro, As quatro estações (Rio de Janeiro, Record, 2001), uma visão pessimista sobre o desdobramento da contracultura no contexto que ele chama de "outono", baseado em Splenger, como ocaso ou decadência, com a vitória da "alienação" e da "reificação", como em bases marxistas (principalmente Lukács), ele explica com bastante pertinência, mesmo que possa ser contraditado. E vindo dele, deve se levar a sério a advertência. Discutí-la sem medo, no mínimo.

    Para completar, já que se falou aqui de Maciel; a disciplina também vai abordar a contracultura no Brasil. De um ponto de vista mais rigoroso, pode-se até desconfiar que a contracultura no Brasil, assim como a democracia (como já alertou o historiador Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), não passou de mais um mal-entendido. Tem uma experiência estética significativa, hoje reconhecida internacionalmente, como o caso do tropicalismo, muito bem estudado por vários pesquisadores, como o importante livro do  pesquisador norte-americano Christopher Dunn, da Tulane University, de Nova Orleans: Brutalidade Jardim. A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (Unesp, 2009). O livro de Dunn demonstra com muita propriedade como o tropicalismo representou um avanço na cultura brasileira, marcado por uma originalidade estética ao mesmo tempo extremamente contemporânea das experiências internacionais, e simultaneamente, não como cópia ou reflexo. Mas, se no plano estético a contracultura no Brasil teve um papel destacado, o mesmo não se pode dizer, até prova em contrário, que pesquisas empíricas poderão demonstrar, com relação a outros aspectos, mais tímidos.

   Pode-se até dizer, não sem margem de riscos, que a contracultura no Brasil foi muito superficial quando se pensa nas transformações dos costumes (curioso isto, num país abaixo do Equador, onde se dizia na época colonial que não haveria pecado) e até da vida intelectual, ainda bastante provinciana, apesar das exceções de sempre. É próprio da cultura brasileira, tão rica e multicultural de um lado, e talvez até por causa disto, também ter como uma de suas características uma capacidade de importar sem critério, hospedar sem rigor, também uma das características da "cordialidade" apontada por Sérgio Buarque em seu livro classico, e também muitas vezes mal-interpretado. Importamos com facilidade quase tudo, de bugigangas a valores. Por exemplo, no momento estamos importando através de alguns orgãos da grande imprensa, a retórica retrógrada do Tea Party norte-americano (que se considera herdeiro das tradições libertárias norte-americanas, incluindo a contracultura, mas no fundo não passa de um movimento de extrema-direita que busca uma nova roupagem para a intolerância, o racismo e a xenofobia, uma espécie de Ku-Klux-Kan sem fantasias brancas de fantasmas e archotes com fogo assombrando pobres negros). Hoje eles elegeram Obama como alguém a ser linchado. O fato dele ser o primeiro presidente negro eleito nos EUA deve ser mera coincidência...

   Mas nem sempre a importação pode ser considerada negativa, claro, como combatiam os nacionalistas mais extremados, pela direita ou pela esquerda. A própria democracia moderna deve ser sempre bem-vinda, a escravidão e o racismo não. Portanto, não há possibilidade de neutralidade, nem no pensamento que se julga científico, o acadêmico. A Academia não pode temer tratar qualquer tema, nem sofrer restrições ou constrangimentos pelos assuntos que pesquisa. E a contracultura é um tema delicado, envolve atividades ilegais, imorais, e algumas até engordam. Mas também a universidade não pode se tornar um centro de difusão ideológica, por mais avançada ou libertária que seja. O limite da possibilidade da pesquisa é o de obter conhecimento, com todas suas implicações. Pode-se até não se atingir a Verdade, no sentido dogmático (o que já é um contra-senso), mas esta meta nunca deve ser abandonada, mesmo que isto gere desconfianças do status quo, que não gosta de ser perturbado nunca.

  A contracultura é um tema, meu tema, tema da disciplina optativa, claro que não exclusivo, mas a meu ver extremamente profícuo para o desenvolvimento de um conhecimento interdisciplinar que tem tudo a ver com a contemporaneidade, não no sentido simplesmente cronológico, afinal se trata de um movimento já cinquentenário (se levarmos em conta que a literatura beat dá início ao movimento nos anos 1950), mas que aponta para os desafios da contemporaneidade, que é saber sim, não simplesmente acreditar, como queria o lógico Karl Popper - nada suspeito quando se trata de ideologia -, da posibilidade real e concreta de criar um mundo melhor. Um mundo melhor não só é possível, mas qualquer historiador pode comprovar que tem melhorado, e muito, principalmente nos dois últimos séculos, principalmente para os mais pobres, as mulheres, os negros, asiáticos, nordestinos no Brasil, os homossexuais, enfim, todos os que os auto-intitulados "conservadores" tripudiam. Só os mal-intencionados, quase sempre no arco ideológico da direita, que sabem ganhar dinheiro com provocações baratas, que às vezes fazem sucesso com uma elite entediada, e gostam, com empáfia e arrogância sectária, de ridicularizar esta vocação humana para o desenvolvimento de todos seus potenciais: criativos, cognitivos e afetivos.

  É também sobre isto que o estudo da contracultura pode ajudar a revelar, e até ser um antítodo contra o veneno daqueles que esperneiam sobre um processo histórico  que não lhes agradam, por não admitirem que privilégios possam ser derrubados (eles não engolem a Revolução Francesa até hoje),  e não aceitam a ascensão de novos sujeitos da história, sejam eles operários, mulheres, negros ou jovens. Mas o ponto principal é que é uma utopia que ainda atrai a atenção de muita gente, principalmente jovens curiosos sobre aqueles anos loucos, aquela Geração do Amor, que buscou abrir várias portas, da percepção à expansão da consciência. Que cometeu muitos erros, abusou da própria natureza que dizia defender, mas que acreditou na possibilidade da humanidade viver em paz, feliz e serena. E isto não é pouco, por isto pede para ser estudado em preconceitos ou ranços dogmáticos, sejam conservadores (eufemismo de direita) ou esquerdistas (muitas vezes tão conservadores quanto, ou seja, direitistas no autoritarismo e dogmatismo).

    Além, é claro, do prazer renovado de  poder ler e reler Aldous Huxley, de assistir novas montagens do musical Hair (como esta belíssima montagem que está sendo apresentada no Teatro Oi Casa Grande, no Rio de Janeiro, e que deve vir para São Paulo no segundo semestre de 2011, já comentada neste blog), de rever o filme "Sem Destino", e de ouvir sempre Jefferson Airplane, na bela voz da bela e graciosa, apesar do pleonasmo, Grace Slick, cantando "Somebody to love", seja através de imagens do Festival de Woodstock, o maior evento contracultural da história, e que virou filme. Ou no som do carro enquanto enfrentamos um trânsito maluco na "melhor cidade da América do sul", como diria um legítimo representante da contracultura no Brasil, o então tropicalista Caetano Veloso, autor de "Baby", onde também podemos ouvir na bela voz da também bela Gal Costa...