Cultura e contracultura - relações interdisciplinares

domingo, 24 de fevereiro de 2013

                  O DEMIURGO, de Jorge Mautner (1970)


                                                                                                      "O filme é uma farsa, uma fábula"
                                                                                                                                 (Jorge Mautner)

Por ocasião da estreia no Espaço Itaú de Cinema do documentário "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto", de Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2011), baseado em livro do próprio com o mesmo título (Rio de Janeiro, Agir, 2006), veio a tona um filme realizado por Mautner em Londres com os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil e visto por poucos. Eu o assisti no Teatro Oficina,  por volta de 1972,  e agora entendo porque o filme não foi apresentado em sala de cinema, mas em "espaço cultural". E no ano passado eu assisti do documentário no Festival "Tudo é Verdade", na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, no encerramento do festival (31/03/ 2012), uma semana antes de viajar para Nova Orleans, onde faria uma palestra sobre os "ícones da contracultura brasileira", na Universidade Tulane, a convite do professor Christopher Dunn, brasilianista especializado no tropicalismo, sobre o qual publicou um livro indispensável: Brutalidade Jardim. A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira (São Paulo, Unesp, 2009).

Revi o filme na semana passada, quarta-feira, 20/02/2013, a tarde, e assisti o "Encontro com Jorge Mautner", no Centro da Cultura Judaica, em que Jorge Mautner dialogou com José Miguel Wisnik (professor da USP, mas também compositor, tendo músicas em parceria com Mautner,  e Carlos Rennó, compositor, com, entre outras coisas, um belo trabalho com versões de Cole Porter. O papo foi muito bom, profundo e divertido, com até uma canja a capella dos participantes no final. Mérito de Yael Steiner, diretora do Centro da Cultura Judaica, sempre organizando eventos interessantes neste importante espaço cultural. Eu tinha uma pergunta a fazer a Jorge Mautner, mas, talvez por timidez (ou bom senso, sei lá)  não a fiz. O que pretendo fazer brevemente com mais tempo para conversar pessoalmente com um artista que admiro desde a juventude.
E, por isso, quando estive em Nova Orleans, cidade que pretendo voltar muitas vezes em minha vida, escrevi algumas anotações sobre o filme que agora é tratado com destaque no documentário de Bial e d'Alincourt, que servirá de base para um estudo mais profundo sobre a obra de Jorge Mautner, um dos 3 ícones da contracultura brasileira tratados na palestra no Departamento de Português e Espanhol da Tulane University. Os outros dois escolhidos foram José Agrippino de Paula e Luis Carlos Maciel.

Segue adiante as anotações feitas em Nova Orleans para o debate sobre o filme "O Demiurgo":

O próprio Mautner brinca com a realização deste filme realizado em Londres em 1970, ao conversar com Caetano Veloso e Gilberto Gil durante as filmagens (e mantidas) no documentário de Pedro Bial e Heitor d'Alincourt, "Jorge Mautner - O Filho do Holocausto". Mautner declara que "O demiurgo" é uma "chanchada filosófica", mas também declara ser uma homenagem a Caetano Veloso, então exilado pela ditadura militar brasileira em Londres; Caetano sim, brinca muito no filme e parece não o levar a sério até hoje, aparentemente com aval de Mautner.
Mas ou Mautner pensa o mesmo, o que não creio, mas exatamente por levar a sério sua experiência cinematográfica, esconde suas fontes, o que permitiria uma chave mais consistente sobre o filme, que está merecendo ser estudado e debatido, com o que pretendo fazer aqui em Tulane.

Ruth Mendes, que foi esposa de Jorge Mautner por 15 anos, mãe de Amora Mautner, e que manteve uma profunda amizade com ele depois de separados, dá um um interessante depoimento em março de 2002 a Sérgio Cohn e Juliano de Fiore, incorporado na publicação da Azougue das obras completas de Mautner (Trajetória do Kaos. Rio de Janeiro, Azougue, 2002 ). Em primeiro lugar, ela afirma que é um filme feito para Caetano Veloso (talvez por isto ele achar tanta graça no filme, e não por desrespeito). E Ruth Mendes lembra que é o único registro fílmico do exílio dos tropicalistas (só por isto, o filme tem uma importância documental extraordinária). O dinheiro que empregaram no filme era guardado para dar entrada em um apartamento em Ipanema. A produção foi de Arthur de Mello Guimarães e sua mulher Maria Helena Guimarães. Os negativos foram das sobras do filme "Queimada" (Gillo Pontocorvo, 1969), que teve Marlon Brando no elenco. Aliás, diz Ruth, "é por conta da extrema qualidade desses negativos que o filme está em ótima qualidade até hoje". Alguns profissionais foram remunerados, como o editor e o diretor de fotografia, um inglês, que ainda segundo Ruth, realizou uma fotografia simples, mesmo "não entendendo muito bem o que a gente queria". A fotografia é clássica, o filme é experimental no conteúdo, bem ao modo de Mautner. Uma aventura corajosa: "Todo o nosso dinheiro foi investido neste filme, que no fim acabou nunca dando lucro algum".

Um filme experimental de contracultura, feito no contexto do exílio dos tropicalistas, mas um filme ambicioso, nada simples. Mesmo a censura no Brasil o comparou a um filme colegial, amador, naïf. O filme não foi liberado a princípio, só depois de muita negociação, e mesmo assim com restrições, explica Ruth: "O filme não tinha sido liberado porque ninguém conseguia entender de resto o que acontecia, parecia ingênuo demais que devia ter algo por trás daquilo". O filme fala de Nietzsche e coisas aparentemente amenas, como se Nietzsche fosse ameno, claro. E a censura, deconfiando, ou por burrice, do que poderia estar por trás do filme,  não lhe concedeu o "Certificado de Qualidade", que permitiria sua distribuição comercial  "O Demiurgo" foi,  então, classificado como "Arte", que parecia ser um mérito, mas só o liberava para espaços culturais, inviabilizando assim sua exibição comercial nos cinemas. Eu mesmo vi o filme, como disse acima, com amigos do ensino médio, no Teatro Oficina, por volta de 1972, quando participava de um grupo de teatro amador. Mas o filme não é simples, e merece ser debatido. O que proponho a seguir é um roteiro não conclusivo. É que tenho uma suspeita, que em parte apresentei na palestra em Tulane.

Uma suspeita do que está na base filosófica de Jorge Mautner (até aí ele já diz isso),  de sua adolescência em São Paulo, quando frequentava a casa do filósofo Vicente Ferreira da Silva e sua mulher, a poetisa Dora Ferreira da Silva.

Vicente Ferreira da Silva (1916-1963)

Muitos jovens frequentavam  a casa deste filósofo no final dos anos 1950 em São Paulo. Até o futuro professor de filosofia da USP,  José Arthur Gianotti,  chegou a participar dos acalorados debates na casa de Vicente Ferreira da Silva, como declara em seu depoimento sobre seu contato com Vilém Flusser, um pensador tcheco que viveu um bom tempo no Brasil e hoje cada vez mais reconhecido na Europa como um dos principais pensadores da 2ª metade do século XX.  Mas Vicente Ferreira da Silva não foi aceito no Departamento de Filosofia da USP, mesmo tendo escrito vários livros desde a década de 1940 (foi o introdutor da Lógica no Brasil). A alegação foi que sua formação acadêmica foi em Direito, na própria USP, não em filosofia. Mas talvez a motivação tenha sido ideológica, por suas supostas simpatias pelo integralismo. E também Vicente Ferreira da Silva morreu muito jovem, aos 47 anos, no ano de 1963, em um desastre de automóvel. Para Vilém Flusser, que também morreu em um desastre de automóvel nos anos 1990, quando voltava para sua cidade natal, Praga, depois de longos anos de exílio; Vicente Ferreira da Silva foi,  no século XX, o único filósofo brasileiro autêntico, com pensamento próprio, fincado nas origens da fenomenologia, mas principalmente nas tradições católicas e africanas do Brasil, o que o torna um pensador singular, que vem despertando estudos recentes que buscam tirar uma mancha ideológica (uma raiz integralista), no mesmo sentido em que se questiona as bases nazistas no pensamento de Heidegger.
Mautner frequentava a casa de Vicente e Dora aos 16 anos de idade, quando começou a escrever o romance Deus da Chuva e da Morte, só publicado em 1962. Em dezembo de 1960, assim a poetisa Dora Ferreira da Silva descreveu o jovem poeta de 19 anos: "Os fragmentos aqui publicados dois  livros de George (o Jorge veio depois) Henrique Mautner darão uma ideia do talento desse jovem, que, para além linguagem herdada e dos propósitos definidos de uma cultura, enfrenta o caos de um novo por dizer" (Revista Diálogo).
Mas é na filosofia de Vicente Ferreira da Silva que podemos encontrar uma pista para as bases epistomológicas do jovem artista, romancista, poeta e músico. Ferreira da Silva publicou na revista Letras e Artes (Rio de Janeiro, 07 de março de 1948) um interessante, e estimulante, ensaio intitulado exatamente "O demiurgo", onde indica as fontes na "aurora do mundo" da relação entre o mundo interior (alma) e o mundo objetivo, que chamamos de realidade; uma figura viva, já indicada por Platão em Timeu, que é um intermediário entre o mundo subjetivo e o objetivo. Esta figura é o demiurgo, mas também pode ser um filósofo ou, talvez até contrariando Platão de outros textos, um Poeta. Esta figura, associada aos antigos mestres (os verdadeiros, antes de Sócrates e, portanto, de Platão) interessou também, conforme Ferreira da Silva, a Nietzsche, para quem o filósofo deveria ser "um criador de valores e de novos mundos". O demiurgo é, portanto, um intermediário entre dois mundos: o divino e o humano. Um arquétipo muito caro ao jovem nietzscheniano como Mautner, ele próprio se enxergando narcisicamente como um, mesmo que se espelhando em Caetano Veloso, para quem o filme foi feito. Conclui Ferreira da Silva de uma forma muito clara, e pertinente às imagens que se sobressaem no filme:  "O Demiurgo será  assim esse semideus, esse herói, esse fundador capaz de despertar no coração do homem a sede de realizações inéditas.Com a instauração de uma nova tábua de valores, novos sentidos embebem as coisas, marcam-se as linhas divisórias, polariza-se o real. E assistimos então uma nova Gênese, a um novo nascimento, a um novo batismo "(in: Transcendência do Mundo. Obras completas. Organização, edição de texto e notas de Rodrigo Petronio. São Paulo: É Realizações, 2010, 215-218).
Vendo-se por este prisma, pode haver algo mais contracultural  que isto?  Não seria também por esta razão ser tão difícil entender pela ótica da razão o filme "O Demiurgo"?   O filme pode não ter no sentido formal a força da arte experimental dos anos da contracultura, mas com certeza apresenta um conteúdo novo, contemporâneo, de um devir que ainda não nos demos conta, confirmando o poeta como profeta. Como um Nietzsche para o século XXI.
                                                                   (Nova Orleans, 9-10/04/2012).

Notas acrescidas em 24/02/2013.
1. Após reler o livro e rever o filme, principalmente após o debate no Centro da Cultura Judaica em 20/02/2013, quero deixar bem claro que a base fundamental na Bildung de Jorge Mautner, como relata com tanta precisão, tanto no livro como no documentário,  está em sua peculiar origem familiar, com um pai judeu alemão, intelectual fugido do nazismo, uma mãe austríaca católica (que estava grávida dele no navio em que veio ao Brasil), um padrasto músico da Orquestra Sinfônica e uma babá nos primeiros anos, ainda no Rio de Janeiro, mãe de santo do candomblé. Mas parece-me que em sua juventude em São Paulo, ainda aluno do Colégio Dante Alighieri, quando se reúne a um grupo de poetas beatniks (Claudio Willer, Roberto Piva e outros), foi decisivo aquele encontro com o filósofo Vicente Ferreira da Silva, que lhe esclareceu o "amálgama" da cultura brasileira que ele tanto ama. Como diz Caetano Veloso no prefácio do livro (Jorge Mautner - O Filho do Holocausto. Memórias (1941 a 1958). Rio de Janeiro: Agir, 2006): "Jorge Mautner, filho do holocausto, filho do Brasil".
2.  Em sua autobiografia intelectual, Vilém Flusser aponta, entre outros méritos do pensamento de Vicente Ferreira da Silva, uma profunda atualidade no final do século XX, com perspectivas para o século vindouro: "Basta dizer que toda uma série de ideias radicais que irão sacudir o pensamento ocidental atualmente, ideias geralmente associadas com a "nova esquerda", com o movimento hippie, com a "segunda revolução americana", e com a "revolução cultural chinesa", se acham não apenas prefiguradas, mas elaboradas no pensamento de Vicente, e que tais ideias revelam aspectos de Vicente que ainda continuam apenas implícitos nas tendências da atualidade". (Bodenlos. Uma autobiografia intelectual. São Paulo: Annablume, 2007, pág. 111).



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